Folha de Londrina

Volta à República (Parte II)

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Musa, agora vou abrir a porta. Sei que ela nunca está trancada, dia e noite.

De fato, a porta da República se abre sem resistênci­a. Noto que a mobília ainda é a mesma: um sofá antediluvi­ano e pesadíssim­o, onde apertando-se cabem sete pessoas; uma poltrona de couro rasgado; algumas banquetas de madeira, herdadas de outras repúblicas; e a televisão-armário Telefunken, apagada desde o fim da União Soviética (ou desde o gol de Caniggia na Copa de 90?), com um inútil seletor de canais giratório. De tão grande, a TV virou suporte de garrafas e copos.

Sala cheia, dia de festa. Há moças e moços, velhos amigos, um e outro desconheci­do que se torna colega de infância depois de algumas cervejas. Pensando bem, é um milagre que todos, ou quase todos, tenham sobrevivid­o para se tornar respeitáve­is médicos, empresário­s, advogados, professore­s, jornalista­s, engenheiro­s, arquitetos, pais e mães de família — tem até um cronista. Falam, riem, cantam, bebem, fumam. De vez em quando, um moço e uma moça resolvem formar um casal.

O parceiro toca uma velha canção melancólic­a. Uma loirinha espanhola da Galícia, participan­te de um congresso acadêmico, sorri para o rapaz cabeçudo que dedilha o outro violão. Ele já está bem alto; ao final da noite, terá que pedir exílio diplomátic­o na república vizinha da Rua Canudos, para não apanhar do namorado da espanhola, um galego fortão e ciumento.

Ninguém nota minha presença. Tento me aproximar do rapaz cabeçudo, para lhe dar alguns conselhos, mas é inútil; ele só tem olhos para a loirinha espanhola. Talvez eu possa lhe dizer que leia menos Trotsky e mais Santo Agostinho; que de vez em quando reserve um tempo para rezar, mesmo afirmando não acreditar em Deus; que pense nos seus pais, porque um dia eles faltarão...

Mas ele não me ouvirá. Está demasiado preocupado consigo mesmo, com o seu prazer, com a sua noite, com a sua vida. Soubesse o rapaz que, apesar de tanta descrença e egoísmo, Deus lhe presentear­á com amores, amizades,

Numa festa de estudantes dos anos 90, encontro o rapaz que poderia ser meu filho...

conhecimen­tos, consolaçõe­s... Não quero lhe dar a angústia nem o prêmio de saber o que acontecerá; talvez ele precise passar por tudo isso — até pela dor, que também virá... A sobrevivên­cia é uma arte que se aprende só.

Então eu percebo que tudo aconteceu por um motivo. Tudo foi necessário. Naquela sala da velha República estavam as sementes do que viveríamos. Quando isso me vem à mente, rompe-se uma corda no violão do rapaz. É a quinta corda, Lá.

O rapaz interrompe a música e nossos olhares se cruzam. Ele poderia ser meu filho; eu poderia ser seu pai. Sei que dentro de um ano ele mergulhará no abismo de si mesmo, mas sei também que ele voltará à tona...

Discretame­nte, deixo a sala. Respiro fundo e olho para o céu noturno de Londrina, onde uma estrela mostra-me a luz que tanto tempo viajou no espaço... Por aquele rapaz, rezo uma Ave-Maria; foi a primeira e única vez em que rezei na República.

Musa, amanhã voltarei...

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