Folha de Londrina

Perdi amigos que fizeram da dor literatura, da angústia a matéria-prima que os tornou especiais.

- CÉLIA MUSILLI

Em duas semanas perdi amigos de quase uma vida inteira. Primeiro o professor Donato Parisotto com quem convivi durante alguns anos, em reuniões alegres com a família: Dona Iracema, Suzy, Rafael e a Graciane, que também já não está entre nós. Ela partiu há cerca de um ano, antes do pai, e agora deve estar com ele.

Donato Parisotto é um dos meus tipos inesquecív­eis, dono de uma gargalhada cristalina, professor de Letras da UEL durante décadas, exímio conhecedor do português, membro da Academia Londrinens­e de Letras, um pai dedicado, um amigo daqueles que só dão alegria. Costumava ler minhas crônicas aos domingos e, quando me encontrava, sempre comentava um texto com atenção, mas o que mais eu gostava nele era sua risada, que enchia os cômodos em dias de festa. Soube que depois da morte da filha Graciane, ele nunca mais gargalhou, ficou mais triste e fez silêncio onde antes havia uma risada inconfundí­vel. Em seu velório, há duas semanas, ouvi de sua esposa, Dona Iracema, que ultimament­e, já adoentado, ele pedia a ela que lesse em voz alta minhas crônicas aos domingos. Isso desperta em mim a gratidão pela amizade e a honra de ter uma pessoa tão culta entre meus leitores. No seu velório, ao ver as coroas de flores, lembrei-me dos grandes buquês que ele sempre dava à mulher e às filhas, soube que sempre eram sete ou 12 reunidas. Contava as flores porque “buscava a perfeição”, frase que tinha a ver com sua condição de poeta e grande conhecedor da literatura barroca. Creio que a própria poesia era uma de suas musas.

Outra perda, na última quarta-feira, foi a de Elizabeth Camargo da Silva, ou simplesmen­te Beth. Em Londrina, ela teve um sebo de livros que se tornou um emblema cultural nos anos 90. Foi ela uma das primeiras pessoas a fazer uma conexão alternativ­a de livros e literatura especialme­nte para o público jovem e para pessoas de todas as idades. Uma de minhas primeiras entrevista­s como repórter de cultura na FOLHA foi com a Beth. Nunca me esqueço da tarde que passei no Sebo Lido, onde não apenas se comprava livros, mas se lia, tendo a Beth a nos indicar as novidades que ela colocava à disposição de quem passasse pelo endereço que não era só uma livraria, mas um ambiente de convivênci­a de autores emergentes e leitores cativos. No Sebo Lido comprei um volume de “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel Garcia Márquez, e meu exemplar de “O Século das Luzes”, de Alejo Carpentier, entre outros.

Na minha última visita à Beth, ela já não tinha o sebo, mas mostrou-me em sua própria casa seus trabalhos de artes plásticas. Pinturas muito coloridas, uma explosão que partia de sua mente inquieta e disposta a deixar no mundo uma mensagem de beleza, conseguiu.

Esta semana, partiu também o poeta chileno Nicanor Parra, que tanto o professor Donato quanto a Beth devem ter lido. Desconheço outro poeta que tenha vivido tanto. Morreu aos 103 anos, consagrado como o criador da antipoesia, que significa tirar a escrita das torres para colocá-la na vida. Nicanor nasceu em 1914, quando começava a Primeira Guerra Mundial. Morreu em 2018 alertando sobre os riscos de uma Terceira Guerra, da qual via indícios fortes que talvez tenham determinad­o em sua poesia uma espécie de desencanto. Com muita vida à disposição - o destino lhe deu mais de cem anos, não sei se de solidão falou também da doença, da extinção e da morte. Creio que meus três amigos fizeram da dor literatura, da angústia a matéria-prima que os tornou especiais pela sensibilid­ade e a afetividad­e que nunca perderam, ainda que, como tantos, também tenham perdido tanto.

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Reprodução/ELOG Célia Musilli

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