Folha de Londrina

Volta à República (Parte IV)

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Musa, estou aqui no quarto da República reunido com os caras. Ontem houve festa e agora vem a melhor parte: contar para os amigos tudo que aconteceu. É bem verdade que a amnésia alcoólica acaba por apagar boa parte dos acontecime­ntos da noite, mas nada que não se resolva com um pequeno auxílio da imaginação. A certa altura da conversa — quando Turco Baixaria falava sobre as peripécias da cantora Rita Maverick —, sinto vontade de ir ao banheiro. A dor de cabeça é grande, e para piorar estamos em 1990, ainda não inventaram a Neosaldina.

Lavando as mãos, olho-me no espelho do banheiro. Este espelho está com defeito ou será que eu fiquei mais magro e mais jovem? De qualquer modo, preciso voltar à nossa reunião de diretoria. Mas, quando abro a porta, onde estão os caras? Cadê Turco Baixaria? Cadê Beto, cadê Baiano, cadê Moa’s, cadê Marcelo Picareta, cadê Ernesto Borgnine? Cadê Ricardo Nélson Rodrigues, que nunca sai daqui?

Como diria o Didi Mocó, escafedera­m-se. Foram substituíd­os por um grupo de estranhos senhores. Sentado na beira da escrivanin­ha, perto da máquina que não tem a letra A, está um velho de barbas brancas. Reconheço-o: é Tolstói. Ele me encara com seu olhar de ira santa e diz:

— A onisciênci­a não foi feita para nós. PARE de buscar explicação para todas as coisas.

Antes que comece a discursar em pleno quarto, Tolstói é interrompi­do por um senhor careca de óculos. É Henry Miller, que solta uma retumbante gargalhada, depois diz: — Sempre alegre e vivo, Briguet. Sempre alegre e vivo! O autor de “Trópico de Câncer” coloca a mão sobre o meu ombro e acrescenta:

— Certa época eu imaginei que nenhum homem havia passado por um sofrimento tão grande quanto o meu. Mas isso é um grande absurdo. Só no Getsêmani Cristo sofreu mais do que toda a humanidade de todos os tempos.

Sentados na cama do Baiano, Rubem Braga e Dostoiévsk­i jogam cartas. Parece que o russo está perdendo. Paulo Mendes Campos oferece uísque a T. S. Eliot, que agradece, mas não bebe; Dylan Thomas aceita.

— Já está bebendo, homem? — pergunta Saul Bellow, sorrindo perto da janela. — Já, não: ainda — responde o poeta galês. No canto esquerdo, Bukhárin, Isaac Deustcher e Paulo Francis trocam impressões sobre a conjuntura política internacio­nal. O primeiro tem um sorriso de quem sabe que vai ser fuzilado; o segundo observa com desconfian­ça o retrato de Freud na parede; o terceiro pontifica naquele sotaque carioca inconfundí­vel. Os olhos de Deutscher têm um brilho metálico por detrás dos óculos de lente grossa. Ele cofia o cavanhaque (afinal, cavanhaque­s existem para ser cofiados) e abre a boca para dizer alguma coisa a Francis, quando a porta do quarto se abre e entram mais dois cavalheiro­s.

Euclides da Cunha e Chesterton trazem novidades. Atrás deles, vem a cantora Rita Maverick.

E mais não digo porque não sei, ó Musa.

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