Folha de Londrina

No ônibus, calouro lia ensaio em que Freud criticava a religião e negava a transcendê­ncia.

- AVENIDA PARANÁ

“Ele nunca está longe de ti; foste tu que te afastaste para longe dEle.” (Santo Agostinho) Naquele dia eu voltava para casa depois de mais uma tarde inteira de aulas no curso de Filosofia da USP. A professora havia acabado de publicar um artigo no famoso suplemento “Folhetim”, intitulado “Marxismo e psicanális­e”. Suas aulas versavam basicament­e sobre dois autores: René Descartes e Walter Benjamin. O primeiro lançou as bases da ciência moderna; o segundo viveu no começo do século XX, escreveu sob influência do marxismo e teve um fim trágico, pouco antes de deixar a Europa tomada pelos nazistas, com destino ao Brasil, onde o aguardava uma carreira de professor... na USP. A verdade é que não entendia nada, ou quase nada. Tinha 17 anos, meu Deus!

No ônibus da linha Vila Nilo — nunca soube onde ficava essa tal de Vila Nilo —, o angustiado calouro da USP lia um ensaio de Freud intitulado “O futuro de uma ilusão”. O ônibus estava lotado e a Avenida Rebouças, congestion­ada; o céu cinzento chovia sobre São Paulo. No texto, Freud criticava a religião. Negava a transcendê­ncia e dizia que o sentimento religioso era “a neurose coletiva da humanidade”. Eu era uma besta e adorava tudo aquilo. Se Freud estava dizendo, quem era um primeirani­sta da USP para contestá-lo? Anos depois viria a saber que mesmo os mais ardorosos freudianos, como o historiado­r e biógrafo Peter Gay, considerav­am “O futuro da ilusão” um dos piores escritos do pai da psicanális­e. Mas eu o adorei; desci do ônibus Vila Nilo consideran­do-me um perfeito ateu.

Desci na Paulista com a Brigadeiro. Sempre chamei aquela avenida de “Brigantôni­o Luís Andeiro”. Há 30 anos venho fazendo esse trocadilho sem-graça; faço-o até hoje. Caminhava eu, portanto, pela Brigantôni­o Luís Andeiro, com destino à Rua dos Franceses, onde ficava o prédio em que eu morava com mais três estudantes de outros cursos.

Naquela noite faltou luz. O detalhe é que minha república ficava no 22º andar e havíamos marcado uma festinha com cerveja e violão. Queríamos conhecer melhor umas garotas; eu tinha especial interesse numa Loira que fazia cursinho no prédio da Gazeta. Não sabia o nome dela, apenas a chamava assim: Loira (com letra maiúscula).

Mas a luz acabou e eu tive de subir os 22 andares do Edifício Diderot (nome que todos pronunciav­am Direróte) pela escada. E lá fui eu, com meu caderno de notas e meu livro do Freud, galgando os 968 degraus que me separavam da festa. Alguns convidados subiam ao meu lado, levando latas de cerveja em seus fardinhos, como se fossem peregrinos de um caminho de Santiago. Estranho peregrino era eu, sem fé e sem rumo.

Quando finalmente chegamos ao apartament­o, as cervejas estavam mornas, mas isso não importava. Começamos a bebê-las mesmo assim. Eu me aproximei da janela e notei que o térreo do Edifício Dideróte, situado no alto do Morro dos Ingleses, dava para o 11º andar do prédio dos fundos. Rapidament­e fiz um cálculo mental: na verdade, eu morava no 33º andar. Mas logo fui despertado de minhas reflexões por um acontecime­nto importante: a luz voltou e a campainha tocou. Era a Loira que chegava.

O dia em que um calouro estudante de Filosofia leu Freud dentro do ônibus e decidiu que era ateu”

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