Folha de Londrina

O CINÉFILO FIEL

‘Lady Bird’ estreia nos cinemas trazendo um enredo contemporâ­neo em que as mulheres são protagonis­tas

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge Especial para Folha 2

“Lady Bird – Aprendendo a Voar” é um autêntico sucesso pop sobre a agonia de ser adolescent­e.

Depois de longa e inexplicáv­el espera – o filme colecionou prêmios importante­s a partir de setembro do ano passado e desde logo ficou na mira do Oscar –, estreia finalmente hoje no circuito brasileiro “Lady Bird – Aprendendo a Voar”, um dos bons de 2017, também à disposição em Londrina em cópias legais e ilegais. Bom, mas não excepciona­l, embora tenha arrebatado de tal forma a crítica dos EUA que chegou a receber a maior pontuação no website Rotten Tomatoes (até 2016, propriedad­e da Warner Bros), popular agregador de resenhas de cinema e televisão. Com seu primeiro filme como diretora, a também roteirista (e atriz, mas não aqui) Greta Gerwig apresenta uma versão ficcional de sua adolescênc­ia com este filme belo e delicado, autêntico sucesso pop sobre a agonia de crescer naquele momento da vida em que você acha que sabe tudo e que tudo pode. E está prestes a compreende­r como você está equivocado sobre o que pensa que sabe e o tudo que acha que pode.

O tempo é 2002, quando eram recentes os danos psicológic­os causados pelo ataque ao World Trade Center de NY. A atriz irlandesa-americana Saoirse Ronan (a pronúncia é mais ou menos Sorcha Ronen, mas não importa) interpreta Christina McPherson, ou melhor, Lady Bird, como ela insiste que a chamem, ou ainda o alter ego da diretora. Precoce, inteligent­e e ávida por devorar o mundo, Lady Bird mal pode esperar para deixar sua pacata cidade (Sacramento, Califórnia) e assim escapar do “lado errado dos trilhos do trem”, como cinicament­e chama a vizinhança onde mora com a família classe média baixa. Para conseguir esta meta deverá superar vários obstáculos, o mais difícil de todos a sua própria atitude.

Por meio de astutos, rápidos e furiosos diálogos, Gerwig conduz o espectador pelos caminhos do último ano de Lady Bird como estudante de ensino médio. Nesta trajetória ela se junta ao grupo de teatro de seu colégio católico, consegue seu primeiro namorado oficial, se faz amiga da garota rica, blasé e mais invejada da escola e briga com sua mãe. Briga muito... Este confronto é um dos pontos de maior interesse deste roteiro forte, se não o mais. Se Ronan é a vela que move a história, a estupenda Laurie Metcalf como a mãe Marion McPherson é o motor deste barco, mesmo que Lady Bird a considere a âncora de sua vida. Uma relação muito complicada, a um só tempo terna e tóxica, às vezes durante um mesmo diálogo. Marion ama a filha, mas dá a impressão aqui e ali de que não gosta dela. Por seu lado, Lady Bird não perde a oportunida­de de soprar as brasas que inflamam a ira de Marion, o que ocorre num piscar de olhos.

São épicos e até duros de presenciar os enfrentame­ntos entre Lady Bird, em defesa de seus sonhos de vida melhor longe da família, e Marion tão cruelmente honesta e pronta para submeter a filha a cada instante – porque ela mesma teve um dia os mesmos desejos. Adicione a este quadro um pai de boa índole e desemprega­do, um irmão (aparenteme­nte adotado) e sua namorada emocionalm­ente distantes vivendo na mesma casa e fica mais fácil pensar de imediato na própria família disfuncion­al, com a qual é impossível conviver todo o tempo mas da qual nunca nos separamos completame­nte.

É evidente que a calorosa acolhida entre a crítica mostrou que “Lady Bird” é mais do que apenas uma novidade no cinema. Seu brilho vem da qualidade como trabalho de autor do que de qualquer outra coisa. Com sua atmosfera urbana, ligeiramen­te decadente e me- lancólica, o filme analisa a nação california­na, branca e de classe media baixa aqui refletida com grande sensibilid­ade. Mas também resiste a ser irremediav­elmente regionalis­ta, e se abre para uma perspectiv­a muito mais ampla, mais universal sobre as descoberta­s de estar no mundo e as dores emocionais que isto acarreta. É justamente este curioso tom universal que termina por comover e desconcert­ar. É obra apaixonada e realista, íntima e profundame­nte sensorial. Fala sobre desprendim­ento e solidão nos tempos que correm. É análise muito válida acerca do que consideram­os culturalme­nte valioso, mas também uma reflexão ponderada sobre o contemporâ­neo.

O que a diretora Greta Gerwig tem de sobra, para o bem ou para o mal, é sua valentia de ser honesta. Lady Bird não é nenhuma heroína trágica. É uma adolescent­e fazendo e dizendo coisas estúpidas que fazem e dizem tantos adolescent­es – como muitos dissemos e fizemos naquele momento de nossas vidas, quando também éramos felizes e achávamos que não sabíamos. Em vários momentos até rude, áspera, egoísta e mesquinha, Lady Bird se movimenta entre situações e personagen­s buscando seu próprio bem estar, sem considerar os demais. E no momento em que o espectador está pronto para puni-la, ela se sai com ternura quando, por exemplo, defende sua mãe contra os ataques do namorado (“ela me ama muito”) mostrando muito carinho no olhar.

Mas para além de tudo isso, “Lady Bird” é curiosa mescla de intimismo e espetáculo. Há humor inteligent­e e certa reivindica­ção da mulher que não é nada panfletári­a. No filme, a mulher é protagonis­ta, e isto ninguém duvida. A personalid­ade forte de suas personagen­s principais é prova mais que suficiente de que há uma percepção fresca e moderna sobre o gênero. Nada no filme é completame­nte casual e muito menos carente de significad­o. De fato, sua maior conquista seja este coquetel de pequenas ideias concentrad­as e elaboradas sobre a percepção da individual­idade.

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Divulgação ‘Lady Bird’ concentra-se na relação de mãe e filha, a um só tempo terna e tóxica

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