A dignidade do samba
A escola de samba carioca, ao tratar alegoricamente das mazelas do Brasil, apontou que a crítica é uma etapa necessária para que dias melhores surjam no horizonte”
No último domingo, a escola de samba Paraíso do Tuiuti levou para a Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, uma oportuna questão: “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”. Do passado ao presente, assumindo que o futuro está sempre próximo e os problemas suscitados pelo seu enredo estão muito longe de cessar, a Paraíso do Tuiuti trouxe para o Carnaval de 2018 um pouco do que se pode chamar de dignidade da política.
A alegoria, como ensinou Walter Benjamin, aproxima a história e sua superação, o profano no real e o sagrado na constatação. Em outras palavras, a escola de samba carioca, ao tratar alegoricamente das mazelas do Brasil, apontou que a crítica é uma etapa necessária para que dias melhores surjam no horizonte. É nisto que está o elemento fundamental da dignidade da política: cultivar valores e, em nome deles, traçar as estratégias de luta, em busca de uma liberdade que não pode ser condicionada.
Ao tratar da vida nacional de forma corajosa, valendo-se da magia de suas alegorias, a Paraíso do Tuiuti enfrentou os discursos hegemônicos e demoliu a “publicidade oficial” com a qual se confunde a linha editorial dos veículos de imprensa do País. Essa dimensão política inseparável da condição humana – cujas tentativas de ruptura provocam danos irreparáveis à consciência pública dos cidadãos – levantou a audiência e fez toda a Sapucaí cantar, sambar e vibrar.
É difícil auferir todo o processo de construção do enredo da Paraíso do Tuiuti. As escolas de samba atravessam o ano testando harmonias, fantasias e poesias. A busca por apoio e patrocínio interfere no que se pretende levar à avenida, ditando a potência do que se poderá ver e ouvir. De todo modo, até por se tratar de uma pequena agremiação, a Paraíso do Tuiuti se fez digna também por não temer cair nas teias do ódio fácil das redes sociais e do debate empobrecido protagonizado pelos setores mais conservadores e capitulados da sociedade. Mais uma vez, o grêmio recreativo originado no bairro de São Cristóvão, no início da década de 1950, demonstrou intrepidez. O bom samba se percebe no pé e na cabeça.
Graças a Paraíso do Tuiuti, as contrarreformas neoliberais do governo federal, apoiadas por um amplo pacto nacional, “com o Supremo, com tudo”, puderam ser apreciadas pela linguagem artística da beleza e do fino humor. Na Sapucaí, estavam marionetes (gente que aceita o que pregam os meios de comunicação social de massa de forma nada pesarosa), trabalhadores e suas carteiras em punho (dando o tom geral da resistência política do samba), governantes vampiros (com a boca a escorrer o sangue da nação) e escravos de ontem e hoje, a enfrentar, com a habitual bravura, os arranjos das classes dominantes e a sanha do dinheiro que preenche coração e mente dos que se alocam nas estruturas de poder. Num toque de classe, o humor do samba-enredo e a vibração da alegria liberada nos dias de Carnaval deslocam tudo de suas trincheiras de mentiras e ilusões e expõem de forma incontestável os interesses mesquinhos que camuflam os bastidores do poder central. É a tradição da maior festa popular do mundo invertendo papéis e alimentando invencíveis esperanças.