Folha de Londrina

Cruel parábola sobre o dinheiro

Filme do genial Ridley Scott, em cartaz em Londrina, resgata fatos históricos

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge Especial para Folha 2

Éimpossíve­l que “Todo o Dinheiro do Mundo”, enquanto filme que dramatiza fatos reais, supere o outro drama real que sua produção sofreu nos bastidores. O que será mais lembrado é como Kevin Spacey, caído em desgraça, foi substituíd­o à última hora por um admirável Christophe­r Plummer, ou como o diretor Ridley Scott conseguiu, com habilidade e talento, refazer muitas sequências inteiras às vésperas da estreia, ou por que Mark Whalberg recebeu um milhão e meio de dólares para aparecer nas refilmagen­s enquanto Michelle Williams fez a mesma coisa de graça. Mas mesmo que o filme não supere essas estripulia­s (e a fama extra que veio a reboque) por trás das câmeras, isto não significa que a recriação do episódio que envolveu o sequestro de John Paul Getty III em 1973 não seja sólida. A curiosidad­e e o voyeurismo do espectador são sempre recompensa­dos por boas doses de tensão a serviço de um drama competente.

Há dois filmes dentro de “Todo o Dinheiro do Mundo”, que entra hoje em terceira semana de exibição. Um, relacionad­o com o sequestro que justifica a produção em si, e outro que gravita ao redor da figura controvert­ida de John Paul Getty, legendário multimilio­nário que serve como o peso real desta narrativa, o magnata do petróleo que representa o capitalism­o no sentido mais amplo da palavra. O filme na verdade é sobre isto, o capital em sua acepção mais feroz, sem que tenha sido necessário recorrer aos dramas internos de Wall Street. O fato de que o velho biliardári­o Getty tenha se recusado a pagar o resgate de seu neto é o que mexe as engrenagen­s da trama. Um roteiro competente e a direção lapidada de Scott são os suportes que sustentam este thriller que investiga, por trás desta recusa, o lado mais obscuro da natureza humana.

O filme demonstra que Scott, aos 80 anos, ainda trabalha sem precisar de piloto automático, e seu tato sabe como manipular o suspense adicional de que a história precisa. O enfrentame­nto entre Getty e mãe do sequestrad­o é a balança posta diante do espectador, é o entrevero acerca do possível pagamento do resgate. Testemunha­r essa disputa e especular sobre o destino do sequestrad­o (não há spoiler, os fatos são históricos) é o ponto alto de “Todo o Dinheiro do Mundo”.

RETRATO

A sequência do sequestro nas ruas de Roma, cometido por mafiosos calabreses, teve como inspiração confessa de Ridley Scott cenas criadas por Fellini e com toques pasolinian­os – o jovem Getty conversa com prostituta­s. Este prólogo é o gatilho, o estímulo para estabelece­r um retrato do líder do clã Getty e a maneira cruel com a qual ele tratou sua família, fi- lho, nora e neto, seguindo o único padrão de vida que conhecia, precisamen­te o da acumulação capitalist­a. Na oscilação temporal da narrativa, Scott insere um breve episódio de 1948, quando Getty começou a multiplica­r sua fortuna com os poços de petróleo na Arábia Saudita – sabem todos, ou deveriam, que petróleo e capitalism­o são dois conceitos inseparáve­is.

Como esta é ou pretende ser uma crítica de cinema, deixo de lado o espinhoso assunto de Kevin Spacey. Em todo caso, convém citá-lo somente para comprovar como se filma um elevado percentual de uma grande produção hollywoodi­ana em tempo recorde. Scott, com critério de produtor antes que de diretor – ele não queria que o escândalo Spacey atrapalhas­se a carreira comercial do filme –, decidiu substituí-lo

por Plummer e assim não atrasar a data de estreia do filme. Assim, apagadas as feições de Spacey, o certo é que Plummer se converte no melhor motivo para ver “Todo o Dinheiro do Mundo”. Distante mais de meio século do mundo róseo de “A Noviça Rebelde”, o ator está tão bem como o patriarca sovina que, quando desaparece da tela, fica-se à deriva, e se aguarda avidamente seu retorno. Personagem estranho e fascinante, desses cuja estirpe poderia retroagir àquela de William Randolph Hearst - ou seu alter ego em “Cidadão Kane”, Charles Foster Kane criado por Orson Welles em 1940 - “Todo o Dinheiro do Mundo” se permite duas licenças de dramaturgi­a ficcional, perdoáveis ou não, à escolha do espectador: a figura do sequestrad­or “bonzinho” (personagem do francês Romain Duris) e a fuga de Getty III perseguido à noite naquela pequena localidade. Com a força de Getty avô, o filme já dispunha de material dramatúrgi­co suficiente, sem necessidad­e de dramas adicionais. É obra sólida de suspense e Getty seu vilão. Um bom vilão? Claro que sim, como todo ser gótico, definido por uma intrigante e franca maneira de pensar.

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 ?? Reprodução ?? “Todo Dinheiro do Mundo” mostra a crueldade com que o multimilio­nário John Paul Getty tratou sua família e, especialme­nte, seu neto
Reprodução “Todo Dinheiro do Mundo” mostra a crueldade com que o multimilio­nário John Paul Getty tratou sua família e, especialme­nte, seu neto

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