Folha de Londrina

Canção para recomeçar

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Todos os dias, o venezuelan­o Alfredo Gómez, 33, tem que “gastar” o bom português para conseguir garantir o salário no fim do mês. Vender instrument­os musicais em tempos de crise não é tarefa fácil, mas ele não reclama. “A crise brasileira é muito mais suportável do que o que acontece na Venezuela”, compara. Há um ano e meio, Gómez e a esposa deixaram o país natal para recomeçar a vida “do zero” no Brasil.

O curso de Administra­ção de Empresas de nada servia em um país com taxas de inflação astronômic­as e desemprego recorde. Após passar uma temporada em Londrina em uma missão religiosa, em 2015, Gómez cogitou se mudar, mas resolveu insistir mais uma vez. Mudou de ideia quando teve que enfrentar longas filas para comprar comida. “A gente conseguia as coisas em um sistema de troca. Quando faltava açúcar, tínhamos que bater na porta do vizinho e dar algo que ele tivesse interesse”, lembra.

Assustado com a possibilid­ade do quadro se agravar ainda mais, ele aceitou a ajuda dos amigos brasileiro­s que ofereceram acolhida em Londrina. “Eles me estenderam a mão e deram suporte até que nós arranjásse­mos um emprego. Usei minhas últimas reservas em um voo para o Brasil. Só trouxe minha mochila e minha guitarra”, conta. Ao receber notícias da situação na Venezuela, ele diz não se arrepender da decisão. “Quando eu saí já estava complicado, mas hoje está um caos”, lamenta.

Gómez usa o termo “diáspora venezuelan­a” para definir os compatriot­as que deixaram o país. Ele lembra que os primeiros casos foram registrado­s no final dos anos 1990, quando Hugo Chávez assumiu o poder. De lá para cá, cerca de 3 milhões de venezuelan­os abandonara­m o país. “No início, muitos iam para os Estados Unidos, Espanha. Eram pessoas que ainda tinham algum dinheiro para comprar uma passagem aérea. Hoje, a situação é tão caótica que as pessoas não tem dinheiro nem para o ônibus. Elas saem caminhando pelas estradas rumo ao Brasil e à Colômbia”, relata.

Ele admite alguns avanços em políticas sociais promovidos pelo regime bolivarian­o, iniciado por Chávez e sucedido por Nicolás Maduro, mas é categórico ao condenar a forma de governo. “Não há democracia. As pessoas que se expressam contra o governo são perseguida­s, presas. Não há liberdade. Só prospera quem está alinhado ao governo”, expõe. “Os governos populistas tendem a criar uma polarizaçã­o. Rico contra pobre, trabalhado­r contra patrão. Esse não é o caminho”, condena.

A música que era hobby se tornou profissão. Conseguiu emprego em uma loja de instrument­os musicais no centro de Londrina. A paixão pela guitarra ele trouxe de sua cidade natal, Barquisime­to, capital musical da Venezuela e a quarta cidade mais populosa do país, com quase 2 milhões de habitantes. Lá ele deixou a mãe e irmãos. “Esses tempos minha mãe sofreu um acidente e eu a ajudei. O salário médio lá é de 800 mil bolívares [cerca de R$ 20] e uma vacina antibiótic­a está custando 2 milhões de bolívares. É inacessíve­l”, revela.

Ao contrário dos venezuelan­os vítimas de xenofobia no Norte do Brasil, Gómez conta que já foi alvo de algumas “piadinhas sem graça”, mas nada que lhe tirasse do sério. A adaptação, segundo ele, tem sido tranquila. Duas coisas, no entanto, o fazem sentir falta da Venezuela: a família e as arepas, prato de massa de pão feito com milho moído ou com farinha de milho pré-cozido. Em contrapart­ida, Gómez se tornou fã da feijoada, do pão de queijo e do bolo de cenoura. “O mundo hoje está em movimento. Muitas vezes os motivos pelo qual as pessoas mudam não são bons, mas temos que nos apegar às coisas boas que nos acontece.”

(C.F.)

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Anderson Coelho Alfredo Gómez e a esposa deixaram o país natal para recomeçar a vida “do zero” no Brasil

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