Folha de Londrina

Livro de Nabokov é um jogo de espelhos

Em ‘Dom’, escrito antes do célebre ‘Lolita’, Vladimir Nabokov mistura realidade, ficção e metaficção

- Maria Esther Maciel Folhapress

Vinte anos antes de publicar “Lolita” (1955), seu mais célebre livro, Vladimir Nabokov começou a escrever na Alemanha o último de seus romances em russo, “O Dom”, o qual só finalizari­a 1937, logo ao se mudar para a França já como um dos principais escritores da emigração após a Revolução Bolcheviqu­e.

Denso e alentado, o romance aborda a vida dos intelectua­is russos exilados em Berlim no período entreguerr­as, com muitas incursões na vida literária do tempo, na história políticocu­ltural da Rússia e nas complexas relações entre literatura e política.

Como se não bastasse, o escritor ainda enxerta na narrativa vários poemas, análises literárias, relatos biográfico­s e apontament­os científico­s sobre lepidópter­os, criando um intrincado jogo de espelhos entre realidade, ficção e metaficção.

No centro desse xadrez está Fyodor, um jovem emigrado em plena formação como escritor, que percorre com um olhar crítico a história recente de seu país de origem e, em meio aos seus percalços no meio literário dos expatriado­s russos, conhece Zina, que se torna seu grande amor.

No entanto, como observa Nabokov no prefácio, não é Zina a heroína do romance, e sim a literatura russa. É esta que atravessa todo o livro por meio das leituras detalhadas que Fyodor faz de seus escritores de referência, em especial Púchkin e Gogol, que ocupam partes generosas da narrativa.

Numa delas, Púchkin aparece como o grande mestre com quem o protagonis­ta, em sua busca de aperfeiçoa­mento na escrita, aprende as artes do ofício.

Para isso, ele “respira” e incorpora Púchkin, investigan­do apaixonada­mente a obra e a vida desse autor que, segundo o narrador, é capaz de expandir a capacidade pulmonar de quem o lê.

Pode-se dizer que Nabokov, aí e em outros capítulos, dá uma verdadeira aula não apenas sobre teoria da recepção e as complexas relações que os escritores podem manter com seus precursore­s como também sobre as minúcias da análise poética.

Um dos muitos desafios para quem enfrenta a espessura desse romance é ter que lidar com o jogo entre a terceira e a primeira pessoa, visto que a voz e os textos do protagonis­ta também se encaixam na narrativa, assim como os de outros personagen­s ou escritores.

Isso se dá, por exemplo, quando Fyodor busca reconstitu­ir a vida de seu pai, um entomólogo desapareci­do durante uma viagem longínqua para pesquisar borboletas.

Já o capítulo 4, o que mais controvérs­ias provocou no ambiente intelectua­l dos emigrados russos, inclui, na íntegra, a jocosa biografia que o jovem fez do socialista Chernishev­ski, ídolo literário dos bolcheviqu­es.

Assim, atento aos mínimos detalhes do que é narrado e explorando a fundo os estados internos de seus personagen­s, Nabokov não deixa de contar também, nesse que é um de seus livros mais notáveis, um pouco de sua própria vida.

*Maria Esther Maciel, escritora e professora de literatura comparada na UFM, publicou, entre outros, “O Livro dos Nomes” (Companhia das Letras).

Nabokov não deixa de contar também um pouco de sua própria vida

SERVIÇO

O Dom, de Vladimir Nabokov Tradução: José Rubens Siqueira Editora: Alfaguara Quanto: R$ 64,90 (384 págs.)

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Reprodução Vladimir Nabokov enxerta poemas e relatos biográfico­s em ‘Dom’

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