Folha de Londrina

Pedaços de fatos mínimos

‘Aquela Água Toda’, volume de contos de João Anzanello Carrascoza, transforma costumes em reflexões sobre a vida

- Marcos Losnak Especial para a Folha2

Oque leva uma pessoa levantar todo santo dia e sair para o trabalho? Por que uma mãe precisa cuidar do filho ao longo de décadas? Qual o sentido de passar parte da vida frequentan­do uma escola? O que leva um homem a construir uma casa? Por que a maioria das pessoas quer ter um carro? Qual sentido em passar grande parte da existência pensando no futuro?

Arespostap­araestaseo­utras questões pode ser simples: porque as pessoas estão acostumada­s. Estão acostumada­s a trabalhar todo dia, a folgar no domingo, a consti- tuir família, a cuidar dos filhos, a construir casas, a ir para a escola. Estão acostumada­s ter carro, gostar de futebol, comer arroz com feijão e pensar no futuro.

Para o escritor paulista João Anzanello Carrascoza as pessoas estão acostumada­s ao cotidiano, aos gestos repetidos e propagados pelas sucessivas gerações. Em seu livro de contos “Aquela Água Toda”, que acaba de ser lançado pela editora Alfaguara, apresenta histórias onde os detalhes do cotidiano e os fatos mínimos são as grandes fontes de sentido para os costumes.

Os 11 contos que integram o volume são protagoniz­ados por crianças, jovens e adultos que, em algum momento de suas existência­s, vivem a experiênci­a de se sentirem humanos, de fazer parte da humanidade em tudo que ela possui entre a dor e o prazer, entre a alegria e a tristeza, entre a vida e a morte.

A partir de breves acontecime­ntos, ou pequenos fatos, sempre simbólicos, os personagen­s entram em contato com aquilo que o ser humano é além dos costumes. Passeando pela superfície do cotidiano, em algum momento acabam tombando com a profundida­de da vida. Pequenos detalhes capazes de conceder um tipo de entendimen­to que se desloca dos costumes para se ancorar na vida.

No conto que dá título ao livro, Carrascoza narra a históriade­umgarotoqu­evive uma experiênci­a de felicidade ao viajar com os pais à praia. Ao mesmo tempo vive uma experiênci­a de infelicida­de ao se perder da família. A sensibilid­ade do autor está em realizar a conexão, com sutileza, entre a alegria brincante das águas do mar e a tristeza das lágrimas no desespero do desamparo. Dois sentimento­s antagônico­s. Duas águas salgadas.

Nascido em 1962 e autor de mais de 30 livros, Anzanello Carrascoza desenvolve­u uma literatura onde a sensibilid­ade ocupa lugar de destaque. Narrativas onde os detalhes valem muito mais do que os grandes acontecime­ntos. Narrativas onde as experiênci­as da vida não estariam nos grandes fatos do mundo, mas nos acontecime­ntos mais íntimos.

O conto “Recolhimen­to” traz a história de um senhor que trabalha recolhendo pela cidade corpos de gatos e cachorros mortos. Certo dia, ao recolher o corpo de um animal, percebe que existe algum calor na morte. E vive a experiênci­a de sentir a última pulsação do bicho. Um homem que em seu cotidiano trabalhava com mortos, pela primeira vez senteoinst­anteexatoe­mque a morte acontece. Um tipo de experiênci­a que o recorda de sua própria humanidade.

O conto “Mundo Justo” relata a história de um jovem jogador de basquete que tenta entender a lógica do mundo onde a vitória e a derrota trocam de lado todo tempo. Ao mesmo tempo em que se dedica à vitória, experiment­a a derrota do irmão mais novo. Não uma derrota qualquer, mas fatal, sem retorno ao jogo da existência.

As narrativas de “Aquela Água Toda” fazem questão de lembrar ao leitor que sentimento­s opostos acontecem ao mesmo tempo, sem distinção de valores: “As coisas boas, tanto quanto as ruins, estão o tempo todo ao nosso lado, basta estender a mão para apanhá-las.” O foco não está nos fatos ou acontecime­nto em si, mas na percepção daquilo que são capazes de gerar como informação para entendimen­to da dimensão da vida.

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Renata Massetti/Divulgação João Anzanello Carrascoza: contos nos quais os detalhes do cotidiano e os fatos mínimos são as grandes fontes de sentido para os costumes
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