Pedaços de fatos mínimos
‘Aquela Água Toda’, volume de contos de João Anzanello Carrascoza, transforma costumes em reflexões sobre a vida
Oque leva uma pessoa levantar todo santo dia e sair para o trabalho? Por que uma mãe precisa cuidar do filho ao longo de décadas? Qual o sentido de passar parte da vida frequentando uma escola? O que leva um homem a construir uma casa? Por que a maioria das pessoas quer ter um carro? Qual sentido em passar grande parte da existência pensando no futuro?
Arespostaparaestaseoutras questões pode ser simples: porque as pessoas estão acostumadas. Estão acostumadas a trabalhar todo dia, a folgar no domingo, a consti- tuir família, a cuidar dos filhos, a construir casas, a ir para a escola. Estão acostumadas ter carro, gostar de futebol, comer arroz com feijão e pensar no futuro.
Para o escritor paulista João Anzanello Carrascoza as pessoas estão acostumadas ao cotidiano, aos gestos repetidos e propagados pelas sucessivas gerações. Em seu livro de contos “Aquela Água Toda”, que acaba de ser lançado pela editora Alfaguara, apresenta histórias onde os detalhes do cotidiano e os fatos mínimos são as grandes fontes de sentido para os costumes.
Os 11 contos que integram o volume são protagonizados por crianças, jovens e adultos que, em algum momento de suas existências, vivem a experiência de se sentirem humanos, de fazer parte da humanidade em tudo que ela possui entre a dor e o prazer, entre a alegria e a tristeza, entre a vida e a morte.
A partir de breves acontecimentos, ou pequenos fatos, sempre simbólicos, os personagens entram em contato com aquilo que o ser humano é além dos costumes. Passeando pela superfície do cotidiano, em algum momento acabam tombando com a profundidade da vida. Pequenos detalhes capazes de conceder um tipo de entendimento que se desloca dos costumes para se ancorar na vida.
No conto que dá título ao livro, Carrascoza narra a históriadeumgarotoquevive uma experiência de felicidade ao viajar com os pais à praia. Ao mesmo tempo vive uma experiência de infelicidade ao se perder da família. A sensibilidade do autor está em realizar a conexão, com sutileza, entre a alegria brincante das águas do mar e a tristeza das lágrimas no desespero do desamparo. Dois sentimentos antagônicos. Duas águas salgadas.
Nascido em 1962 e autor de mais de 30 livros, Anzanello Carrascoza desenvolveu uma literatura onde a sensibilidade ocupa lugar de destaque. Narrativas onde os detalhes valem muito mais do que os grandes acontecimentos. Narrativas onde as experiências da vida não estariam nos grandes fatos do mundo, mas nos acontecimentos mais íntimos.
O conto “Recolhimento” traz a história de um senhor que trabalha recolhendo pela cidade corpos de gatos e cachorros mortos. Certo dia, ao recolher o corpo de um animal, percebe que existe algum calor na morte. E vive a experiência de sentir a última pulsação do bicho. Um homem que em seu cotidiano trabalhava com mortos, pela primeira vez senteoinstanteexatoemque a morte acontece. Um tipo de experiência que o recorda de sua própria humanidade.
O conto “Mundo Justo” relata a história de um jovem jogador de basquete que tenta entender a lógica do mundo onde a vitória e a derrota trocam de lado todo tempo. Ao mesmo tempo em que se dedica à vitória, experimenta a derrota do irmão mais novo. Não uma derrota qualquer, mas fatal, sem retorno ao jogo da existência.
As narrativas de “Aquela Água Toda” fazem questão de lembrar ao leitor que sentimentos opostos acontecem ao mesmo tempo, sem distinção de valores: “As coisas boas, tanto quanto as ruins, estão o tempo todo ao nosso lado, basta estender a mão para apanhá-las.” O foco não está nos fatos ou acontecimento em si, mas na percepção daquilo que são capazes de gerar como informação para entendimento da dimensão da vida.