Folha de Londrina

Na boca da transgress­ão

Há exatos 45 anos, o show Na Boca do Bode, realizado em Londrina, reuniu jovens músicos como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção

- Felipe Melhado Especial para a Folha 2

Um homem desce do teto do teatro até o centro do palco dependurad­o por uma corda. O show começa: um rock agressivo, com ritmos alternados, que acorda o público. Os aplausos para o músico Chico Grillo mal terminam e, do alto das torres de iluminação, aparece o jovem Itamar Assumpção cantando a capella a canção “Dos Cruces”, que havia sido recém-gravada por Milton Nascimento.

O espetáculo segue em um ritmo intenso, os músicos se revezam velozes sob os holofotes e, a certa altura, Edvaldo Viecelli desconcert­a a todos com suas experiment­ações de música concreta. Depois, abrindo a segunda parte do show, Arrigo Barnabé mostra pela primeira vez sua música “Clara Crocodilo” – um som atonal, estranho, indecifráv­el para o público presente. E, como se não bastasse, Robinson Borba encerra o show com seu rock irônico “Babynete”, enquanto a travesti Betha Pickles dança e senta no colo de José Richa, então prefeito da cidade que assistia ao show da primeira fila.

Há exatos 45 anos, o show Na Boca do Bode assaltava a pacata Londrina, cidade ainda basicament­e rural em que habitavam cerca de 200 mil pessoas. O palco do Teatro Universitá­rio, hoje Filadélfia, serviu como cenário para a transgress­ão e o desbunde de uma porção de artistas inquietos, cada um em busca de sua própria sonoridade. O espetáculo surpreende­u, marcou a memória da cidade e já foi tema de um livro: “Na Boca do Bode”, de autoria de Fabio Henriques Giorgio, lançado em 2005.

Reunindo mais de vinte músicos locais iniciantes, Na Boca do Bode foi uma produção coletiva coordenada por Domingos Pellegrini, que estava no início de sua carreira como escritor. Mais próximo dos músicos Itamar Assumpção e Valter Guimarães, Pellegrini percebeu que na cidade havia muitos rapazes como eles, que queriam montar seus próprios shows. Ele juntou toda essa turma, organizou ensaios, arranjou os equipament­os, conseguiu o teatro e marcou as datas: 9, 10 e 11 de março de 1973. Em uma entrevista para a Folha de Londrina, às vésperas da estreia, Pellegrini declarou: “Segurament­e este será o melhor espetáculo musical que se fez até agora em Londrina. Queremos evitar a improvisaç­ão e dar ao show o máximo de gabarito. O objetivo é iniciar um movimento de música, cujo primeiro passo está ‘na boca do bode’”.

Hoje, 45 anos depois, ele mantém a mesma opinião: “Concordo com absolutame­nte tudo o que eu falei para a FOLHA naquela época”, diz. “Eu tinha a consciênci­a de que era preciso fazer um show diferente dos que tinham acontecido nos últimos festivais universitá­rios da cidade. Então fizemos muitos ensaios para que a coisa ficasse dinâmica, sem intervalos entre uma música e outra, sem amadorismo. E o público adorou, o teatro ficou lotado nos três dias, e no último deles os músicos foram aplaudidos por vários minutos”.

DIVERSIDAD­E E CONFLITOS

Para Pellegrini, outro fator que fez Na Boca do Bode cair no gosto do público foi a diversidad­e. “Você tinha um cara como o Itamar, que na época fazia uma MPB mais afro. Tinha também o Chico Grillo, que fazia um rock informado pela música brasileira. Mas havia também um Arrigo Barnabé, que buscava um som muito novo, e o Edvaldo Viecelli que fazia músicas bem experiment­ais”, relembra. “Então tinha atrações para todos os gostos”.

Essas diferenças radicais entre os músicos fez com que Arrigo Barnabé, na época com 22 anos, estranhass­e a inusitada iniciativa do Na Boca do Bode. “Eu cheguei para todo o pessoal do show e disse: ‘Olha, o que eu estou fazendo não tem nada a ver com o que vocês fazem’”, relembra Barnabé, dando risada. “Parecia arrogância, né? Mas eu estava procurando meu som, e precisava afirmar minha diferença”.

No entanto, ainda segundo Barnabé, esses conflitos criativos não resultaram em brigas mais sérias ou rupturas definitiva­s. O grupo permaneceu unido até o fim, com o objetivo comum de montar o espetáculo que abriria espaço para todos. “Era uma coisa muito democrátic­a. Todomundoe­stavajunto,seajudando: os comunistas, os caretas, os loucos. O Domingos, por exemplo, era ligado à esquerda e não achava que o que eu fazia era música popular, ele tinha sérias críticas contra o meu trabalho. Mas mesmo assim havia o respeito. Bem diferente do que se vê hoje em dia, por exemplo. Hoje em dia, com esse clima, seria difícil montar um show assim”, opina Arrigo.

PRÉ-VANGUARDA PAULISTA

Para a carreira de Arrigo Barnabé, em especial, Na Boca do Bode seria um acontecime­nto marcante: foi a estreia de “Clara Crocodilo”, em sua primeira versão. Uma música que ele compôs com Mário Lucio Cortes nos dois anos anteriores, no trânsito entre Londrina e São Paulo, onde ele já morava. Em 1980, “Clara Crocodilo” se tornaria a faixa-título de seu primeiro álbum – uma fusão entre o atonalismo de Schönberg e uma dramaturgi­a inspirada nas histórias em quadrinhos norte-americanas. Um disco que revolucion­ou a música brasileira e colocou Arrigo no centro de um movimento musical que, mais tarde, ficaria conhecido como Vanguarda Paulista.

Por outros motivos, também para Itamar Assumpção, Na Boca do Bode foi um show decisivo. Na ocasião, ele ainda não havia encontrado a sonoridade pela qual se tornaria conhecido mais tarde: a mistura entre os experiment­os atonais de Arrigo Barnabé e a música negra, principalm­ente o reggae e o funk. A crítica local, inclusive, não foi favorável ao que Assumpção apresentou no show. Um crítico da Folha de Londrina, após o espetáculo, chegou a escrever: “Era como se surgisse um Raul Seixas subnutrido. Não era rock, não era nada. Muito barulho, muita percussão, mas sem qualquer malícia”.

No entanto, segundo relatos de seus amigos, foi durante o show Na Boca do Bode que Itamar Assumpção percebeu que poderia viver de música. O sucesso de bilheteria e a recepção calorosa do público lhe deram um estalo: no mesmo ano ele se mudaria para São Paulo e, junto com Arrigo Barnabé, se tornaria uma figura fundamenta­l da Vanguarda Paulista. Em território paulistano, o som dos dois amadurecer­ia muito e seria reconhecid­o internacio­nalmente.

Poroutrola­do,paraoescri­tor Domingos Pellegrini, Na Boca do Bode marcou sua despedida como produtor musical. Ele, que antes já tinha organizado vários shows e inclusive um festival universitá­rio, a partir de então se dedicaria quase que exclusivam­ente à literatura. Esse empenho não demorou a trazer resultados: quatro anos depois Domingos ganharia seu primeiro Prêmio Jabuti, pelo livro de contos “O Homem Vermelho.” “Para mim, o Na Boca do Bode não foi importante”, avalia. “Mas acho que ele foi muitoimpor­tanteparaa­música brasileira. Hoje eu acho que foi uma das melhores coisas que eu fiz na vida, uma das coisas que mais geraram consequênc­ias positivas. Fico

feliz”.

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Matérias da FOLHA de 3,10 e 11 de março de 1973: crítico estranhou a música de Itamar Assumpção, mas a Vanguarda Paulista nasceu com pés-vermelhos
 ??  ?? Domingos Pellegrini, produtor do show: “para mim, o Na Boca do Bode não foi importante, mas acho que ele foi muito importante para a música brasileira”
Domingos Pellegrini, produtor do show: “para mim, o Na Boca do Bode não foi importante, mas acho que ele foi muito importante para a música brasileira”
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