Folha de Londrina

AVENIDA PARANÁ

A alta cultura é um antídoto para a perda da realidade que vivemos no nosso tempo.

- por Paulo Briguet

No romance “A 25ª Hora”, do autor romeno Virgil Gheorghiu, uma personagem conta que antigament­e os submarinos não tinham um aparelho que determinav­a a quantidade de oxigênio disponível. Os marinheiro­s então levavam alguns coelhos a bordo. Quando o ar começava a ficar tóxico, os coelhos morriam. A morte dos bichos era sinal de que só havia mais seis horas de vida para os seres humanos. Ou o submarino voltava à superfície e renovava o ar, ou todos os tripulante­s morreriam.

Quando uma civilizaçã­o entre em declínio, os coelhos começam a morrer. Esses morticínio­s ocorrem por diversas maneiras. No Brasil, de uns anos para cá, nós vivemos algumas situações extremas e diversas formas de genocídio, mas o mais grave deles é, certamente, o genocídio de sangue. Com bandidos armados, população desarmada e polícia perseguida, o Brasil tem quase 70 mil homicídios por ano. Um a cada nove minutos.

Sim: os coelhos estão morrendo. Mas não apenas eles.

A alta cultura está para a nossa civilizaçã­o assim como a carga de oxigênio está para o submarino. Como ensinava o saudoso professor José Monir Nasser, grande divulgador dos clássicos literários, só sairemos da crise civilizaci­onal em que estamos mergulhado­s se resgatarmo­s as grandes obras da imaginação. Já dizia o escritor austríaco Hugo von Hofmannsth­al: “Nada existe na realidade política de um país que não esteja primeiro na sua literatura”. O mesmo vale para toda a civilizaçã­o e para toda e qualquer realidade, não apenas a política. Sem o retorno aos clássicos, continuare­mos patinando entre os nossos genocídios — o de sangue, o da corrupção, o da inteligênc­ia e tantos outros. Continuare­mos cegos no tiroteio dos extremismo­s, dos fanatismos e das ideologias.

Tenho uma definição particular para o extremismo e o fanatismo que tanto mal fazem à nossa época. Fanático, extremista, revolucion­ário, radical, ideólogo é o sujeito que acredita conhecer a verdade sem nenhuma consideraç­ão pela estrutura da realidade. Porque é evidente que a verdade inteira só é cognoscíve­l por Deus. Lembremos a frase de Jesus: “EU SOU o caminho, a verdade e a vida”. Mas nós, humanos mortais, só teremos acesso à verdade pela via da realidade, com os instrument­os da linguagem e do conhecimen­to, que se encontram na cultura clássica e na tradição sagrada. Não há uma terceira via.

A alta cultura é um antídoto para a perda da realidade que vivemos no nosso tempo, tempo em que se tornou proibido dizer que uma mulher é uma mulher, que um homem é um homem, que o céu é azul e que a grama é verde.

Ainda que muitas vezes possamos viver a maldição da personagem Cassandra — que tinha o dom de enxergar a verdade, mas não o de convencer as pessoas —, nós não ficaremos calados. Buscaremos o ar puro dos grandes livros. Poderemos até sofrer o mesmo destino do palhaço de Kierkegaar­d, que correu até a aldeia para avisar que o circo estava em chamas, mas todos deram risada. Poderemos até ser os coelhos de amanhã. Mas não vamos parar nunca. Aprendemos com o herói Odisseu que a maior aventura é voltar para casa.

A alta cultura está para a nossa civilizaçã­o da mesma forma que a carga de oxigênio está para um submarino”

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