O estigma da pantera
Aqueles que veem o mundo do alto não são capazes de perceber como é complexa a vida dos “de baixo”, daqueles que, apesar das derrotas anunciadas, ressignificam seus sonhos e lutas diariamente
O sociólogo canadense Erving Goffman (1922-1982) cunhou um dos conceitos mais fecundos do século 20: o de estigma. Existiriam duas expressões da identidade humana. A primeira delas, “virtual”, diria respeito ao modo como é vista de fora a diversidade estética e ética de indivíduos e grupos. A segunda, “real”, manifestaria a face nua desses “outros”. Quando ocorrem assimetrias entre o “virtual” e o “real” dos “outros”, o estigma surge como elemento de distinção e, ao mesmo tempo, definição do que seja “normal”.
Nesses termos, há uma normatização, construída por várias instituições sociais (da família à escola, das igrejas às mídias), que predetermina o que é e o que não é cada maneira de ser e viver. Fora do estigma, o que resta é interpretação alheia ao que admitem as condições intocáveis de status e prestígio. Se o diferente contesta seu lugar no mundo, o estigma recorda o que ele pode ou não almejar.
No filme “Pantera Negra” (EUA, 2018), do diretor Ryan Coogler, o herói criado por Stan Lee e Jack Kirby desloca inúmeras identidades do “virtual” para o “real”, valendo-se da ficção e do realismo mágico para redefinir lugares numa realidade tomada por estigmas. Em Wakanda, reino centro-africano em que T’Challa, o Pantera Negra, lidera povos senhores de si, a tecnologia proporcionada pelo domínio de uma substância exclusiva e natural – o “vibranium” – supera os resultados da racionalidade do mundo “desenvolvido” dos brancos seculares e ocidentais. Misturando magia e ciência, Wakanda destaca o ser humano negro como capaz de fugir aos estigmas de inferioridade e vencer tudo aquilo que o reduz diante dos donos do mundo: a fome, a miséria e as diatribes de séculos de escravidão. Wakanda vai além de todas as grandes nações reais da história e promete um mundo de altíssimo desenvolvimento humano e material voltado para a paz, não para a guerra; mediado pela busca de uma universalidade de interesses, não por divisões e exclusivismos.
Uma curiosidade torna Pantera Negra, o herói, ainda mais interessante: ele aparece pela primeira vez nas revistas em quadrinhos em 1966, o ano em que surgem os legendários Panteras Negras, organização política revolucionária dos negros estadunidenses. Nos dois casos, o da ficção e o da realidade, panteras negras lutam por uma história que negue e vença o estigma das identidades virtuais a elas imputado.
É incomum na ficção mercadológica a história protagonizada pelos vencidos. O consenso de que as narrativas sobre as melhores façanhas do gênero humano devem condecorar os vencedores condena ao limbo biografias fantásticas e episódios riquíssimos de resistência político-cultural. Aqueles que veem o mundo do alto não são capazes de perceber como é complexa a vida dos “de baixo”, daqueles que, apesar das derrotas anunciadas, ressignificam seus sonhos e lutas diariamente.
“Pantera Negra”, o filme, faz uma breve incursão ficcional por identidades reais, promovendo reflexões férteis sobre quem são os verdadeiros heróis do mundo, suas emoções e ações concretas. É a sétima arte desafiando estigmas e fertilizando os caminhos para novas realidades.