Folha de Londrina

AVENIDA PARANÁ

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A vasta maioria das vítimas do genocídio brasileiro se chama Ninguém

Há várias cenas inesquecív­eis na Odisseia de Homero. Mas hoje eu gostaria de lembrar apenas uma: quando Ulisses encontra-se aprisionad­o por Polifemo, o terrível gigante de um olho só e devorador de seres humanos, e lança mão de um ardil para salvar a própria vida. Em determinad­o momento, o monstro quer saber o nome do herói e Ulisses responde:

“Ninguém é o meu nome; Ninguém costumavam chamar-me

não só os meus pais, como os mais companheir­os que vivem comigo.”

Ulisses consegue embriagar o gigante oferecendo-lhe um vinho enfeitiçad­o; enquanto Polifemo dorme bêbado, o herói aproveita para cravar um dado no único olho do monstro, cegando-o para sempre. Assim que Polifemo acorda e percebe que está cego, chama outros gigantes para pedir ajuda. E diz: “Foi Ninguém que fez isso!” Diante da estranha resposta, os outros gigantes simplesmen­te dão meia-volta e deixam o assunto para lá.

Se Ninguém fez isso, Ninguém pode ser punido. A Odisseia foi escrita na Grécia há 3 mil anos, mas o ardil que vitimou o gigante Polifemo agora é aplicado não a um monstro canibal, mas ao povo inocente de um país. Esse país se chama Brasil.

Acompanhan­do as notícias dos últimos dias, parece que Ninguém morreu assassinad­o em nosso país nos últimos anos, com a exceção de UMA pessoa. Parece que Ninguém é responsáve­l pelo narcotráfi­co que domina comunidade­s, cidades, estados e regiões inteiras; parece que Ninguém está desarmado diante de criminosos que possuem metralhado­ras, fuzis, bombas e outros artefatos bélicos que usam para intimidar, escravizar e por fim destruir as pessoas comuns; parece que Ninguém cometeu os 61.169 homicídios, nem os 356.841 assaltos que ocorreram no Brasil em 2017; e certamente Ninguém ficará sabendo que apenas 8% dessas mortes e 2% desses roubos são apurados. Por fim, Ninguém é vítima do genocídio do crime que está acabando com o Brasil. Ninguém é sem nome, sem partido e sem mídia. Ninguém não é de direita nem de esquerda; é apenas um ser humano.

Na noite da última quarta-feira, uma vereadora carioca e seu motorista foram mortos no Rio de Janeiro. Todas as caracterís­ticas do crime indicam uma execução. É um ato hediondo, e os responsáve­is por esse ato mereciam apodrecer até o fim de suas vidas na cadeia. O mesmo destino que deveria ser o de todo bandido impenitent­e.

Devo lembrar, no entanto, que a vasta maioria das vítimas do genocídio brasileiro se chama Ninguém. São mortos ganham nome rapidament­e no noticiário e depois voltam a mergulhar no anonimato, a não ser que sirvam para as estratégia­s de marketing político de certas organizaçõ­es, digamos assim, não muito refratária­s aos criminosos.

Na mesma noite em que a vereadora foi assassinad­a, o empresário Cláudio Henrique Pinto sofreu um assalto no bairro de Cachambi, zona norte do Rio. Foi baleado e morto na frente do filho de 5 anos. Penso no menino que grita, desesperad­o: “Pai! Pai!”

Mas a partir daquele momento, Cláudio não tinha mais nome. Passava a ser Ninguém.

A maioria das vítimas do genocídio brasileiro se chama Ninguém. São mortos sem nome, sem partido e sem mídia

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