“Em Pedaços” é um libelo contra a ascensão da direita fascista ao poder .
Entre a vingança e os problemas contemporâneos graves – como a xenofobia e o terrorismo – ‘Em Pedaços”, em cartaz em Londrina, é devastador
Para quem ainda não foi, convém conferir este filme grave e inadiável, anos-luz distante das peraltices do selo Marvel. “Em Pedaços”, em terceira semana no circuito brasileiro, é filme que respira por aparelhos entre a atualidade política e social (o ressurgimento de grupos de extrema direita e os consequentes ataques de xenofobia; o pânico do terrorismo islâmico) e a estrutura clássica de um thriller de vingança. Recente Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, é a história de uma mulher, a alemã Katja (Diane Kruger), que busca a retaliação para o crime que estraçalhou sua vida – a morte da família num atentado hediondo: Nuri, o marido turco de origem curda e o pequeno Rocco, filho deles.
Neste caso, aplica-se a máxima de Nietzsche, que dizia que “se você olhar durante muito tempo para um abismo, o abismo também vai olhar de volta para dentro de você”. A vida passa a não ter sentido, e Katja oscila entre a perda e o desgosto, o luto, o vazio e a necessidade de justiça: a investigação policial não avança, mas afinal a detenção de dois irmãos neonazistas dá uma guinada nos acontecimentos. Com “Em Pedaços”, o cineasta alemão de origem turca Fatih Akin, que já havia ganho o Urso de Ouro em Berlim com “Contra a Parede” (2004), entrega à consciência do espectador um filme poderoso e devastador, construído em linha raivosa e niilista sobre as consequências das tragédias quando não existem motivos para seguir vivendo.
A história está dividida em três partes que são desenvolvidas de maneira linear sem buscar saltos temporais, e todas tem desenlaces surpreendentes. E o relato conta com vigor discursivo importante e evita as típicas convenções do cinema hollywoodiano quanto ao caráter estereotipado dos personagens e às cenas de ação.
Combinando a tragédia familiar, o drama de tribunal e o thriller de vingança, o trabalho de Akin respeita esta sequência narrativa com vistas a retratar o calvário de Katja, martirizada por um Estado obtuso que não cumpre seu dever de administrar justiça em tempo e forma.
“Em Pedaços” se nutre da opção discutível da justiça pelas próprias mãos, e pode-se discutir ainda um formato retórico já bastante utilizado por diversos gêneros – a influência mais antiga (e pouco sutil) é “Desejo de Matar”, que Michael Winner realizou em 1974.
Contra o filme talvez se pudesse cobrar um pouco mais dessa sutileza, e menos obviedade, como se o espectador não fosse capaz de entender se a tragédia fosse menos sublinhada. Mas a provocação e a perturbação acabam falando mais alto; pode não ser o melhor filme do diretor (é com certeza menos efetivo que “Soul Kitchen”, exibido em Londrina pelo Cine Com-tour), mas “Em Pedaços” é bem estruturado e gera natural empatia com o espectador. Estamos diante de um drama maiúsculo de nossos tempos: a questão da imigração não desejada. E conta com uma atuação soberba da alemã Diane Kruger (melhor atriz em Cannes), que sustenta o filme com extrema bravura (deve ser lembrada por seu desempenho pueril e esquemático em “Bastardos Inglórios”).
“Em Pedaços” deve ser visto e pensado tanto como um libelo exemplar contra a ascensão da direita fascista ao poder em países de primeiro ou de terceiro mundo como uma epopeia sobre a desilusão para com a sociedade. Além disso, funciona como excelente amostra do modo como devem ser encarados os filmes de gênero em nossos dias atribulados: sem tanta ornamentação, mas privilegiando o humano.