Maria Madalena em chave feminista
O lançamento de ‘Maria Madalena’ e de ‘Paulo, o Apóstolo’, em maio, retoma o olhar realista sobre os evangelhos proposto por Scorsese há trinta anos
Em determinadas ocasiões o ofício da crítica exige um disciplina mais concentrada. Como, por exemplo, diante de um filme como “Maria Madalena” - em segunda semana a partir de hoje, em Londrina, infelizmente numa única sala e em cópia dublada. Nada a ver com convicções íntimas, com ser ou não ser crente, nem com preconceitos temáticos: o temor é estar diante da solenidade xaroposa de boa parte do cinema bíblico (hoje muito em desuso), seu hieratismo didático, sua linguagem impostada e sua dramaturgia embalsamada. Assim, foi com surpresa que encontrei em “Maria Madalena” interesse diverso daquilo que o gênero pode oferecer. Tratase de discreta e delicada reinvenção, em chave feminista, de um dos mitos mais perduráveis do cristianismo.
O roteiro de Philippa Goslett e Helen Edmundson seguramente foi escrito à luz do decreto do Vaticano que em 2016 reabilitou a personagem – o estigma da prostituição a perseguiu ao longo dos séculos – e a incluiu, com festa e liturgia, na lista de personas gratas que conviveram de perto com o Cristo ao tempo de suas pregações, paixão e morte. Não há notícias sobre a fé praticada pelas roteiristas ou pelo diretor australiano Garth Davis (“Lion”), e isto é irrelevante e um alívio não saber: é um filme de corte bíblico cujo conjunto de ideias, qualidade de interpretação e coerência estética apelam tanto ao espectador laico quanto ao crente. Seu diálogo com o feminismo contemporâneo é evidente, e de fato é mais direto e está melhor estruturado do que aquele que poderia ter com os cânones do cristianismo.
O filme segue o caminho de Maria Madalena (Rooney Mara), desde sua decisão de sair do jugo da família opressiva até acompanhar Jesus (Joaquin Phoenix) naquelas que seriam suas últimas semanas de vida, antes de pregar em Jerusalém. O que o roteiro decidiu contar não são os episódios bíblicos do catecismo mais óbvio, mas os espaços dos silêncios, as elipses entre uma imagem e outra, entre aquelas narradas pelos evangelistas e aquelas que mostram o pregador ampliando um laço de solidariedade fraterna com sua única apóstola. Laço, segundo o roteiro e a direção de Garth Davis, julgado pela História erroneamente como uma relação carnal que afinal redimiria ambos, ele tentado, ela como pecadora.
Como a própria Bíblia, o filme tem muito menos interesse como comprovado registro de fatos históricos do que como parábola universal da solidariedade, da piedade e da compaixão. Contrariamente aos quatro evangelhos mais tarde escrito por quatro homens educados na cultura árabejudaica mediterrânea, o argumento põe ênfase na relação igualitária entre homens e mulheres como motivação maior dessa mesma espiritualidade. Embora às vezes demagógico, o filme tem a discrição de manter distante eventuais deslizes moralistas ao construir belas sequências sensoriais como aquela no interior de uma colônia de pessoas doentes nas montanhas, montada com elegância, executada com precisão e dramatizada com segurança. É neste e em outros momentos que o filme é mais hábil ao dialogar com o espectador; e não na recriação da última ceia, na ressurreição de Lázaro, no suicídio de Judas ou na crucificação e morte: mesmo apresentados com sobriedade e elegância lacônica, não deixam de ser teatrais.
Discretos, contidos e matizados, Mara e Phoenix tratam de construir seus personagens com credibilidade e recheados de humanidade prosaica, seres perplexos com suas dúvidas, ele ainda mais ao lidar com a dualidade humana-divina. O Pedro de Chiwetel Ejiofor e o Judas de Tahar Rahim resultam beneficamente em figuras complexas, menos monolíticas e mais nuançadas. Fascinante a trilha musical, a última composta por Johan Johansson, falecido aos 48 anos no dia 9 de fevereiro, três semanas antes da estreia mundial do filme.