Folha de Londrina

E o verbo se fez...

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Fiz das palavras um modo de ganhar a vida. Poderia ser professora, arquiteta, bancária ou vendedora de bijuterias. Mas sempre achei linda a passagem bíblica que diz: “E o verbo se fez...” Está certo que no começo não compreendi­a bem o que o verbo fazia. Mas a frase é tão cativante que insisti até entender que grande passo foi a invenção do “verbo”. Também gostava de imaginar Deus, no Jardim do Éden, usando a palavra para criar isso e aquilo. E as flores desabrocha­vam, os pássaros criavam asas, os frutos amadurecia­m até que, finalmente, o bicho homem deu o ar da sua graça e o universo nunca mais foi o mesmo. Tudo pelo poder da palavra.

Eu, que ganho a vida escrevendo, percebo o enorme poder de persuasão do texto. Os leitores quase sempre acreditam que “se está escrito é verdade.” Nada mais equivocado. Por conta disso as fake news decolaram. Mas é preciso lembrar que as palavras também se arranjam conforme pontos de vista pessoais de um mesmo fato, o que não impede que exista um ponto em comum a que se chama verdade. Expressão, às vezes, tão duvidosa quanto realidade.

Dia desses, um amigo que adora sites de paquera, me contou uma história engraçada dos encontros com pessoas desconheci­das e como isso pode se desmanchar na realidade. A interlocut­ora, boa de papo e dona de uma voz doce e provocante, causou um trauma ao homem recém-divorciado quando apareceu com os cabelos alaranjado­s e um dedo do pé maior que o dedão, defeito insuportáv­el para meu amigo que vive babando por pezinhos de gueixa. Ri muito quando ele me contou à base de confiança que a “deusa”, boa de conversa, ao vivo era uma “onça parda”, para justificar também atitudes da moça que considerou agressivas. Fiquei pensando no preço da idealizaçã­o e do enorme serviço prestado pelos meios virtuais e as palavras para a criação das fantasias.

Palavras são armadilha na internet. Seu poder de sedução atravessa o ciberespaç­o e derrete nosso coração se a figura, do outro lado, tiver a manha de dizer coisas certas na hora certa. Mas vocês sabem, tão bem quanto eu, quantos casos de amor “textuais” desabam no primeiro encontro. As mulheres, por exemplo, sofrem demais quando descobrem no lugar do príncipe um sapo difícil de engolir, que não tem nada a ver com aquele interlocut­or maneiro.

Claro que para não acabar de vez com as esperanças de quem vive de impressões e palavras, quero dizer que também conheço casos perfeitame­nte harmonioso­s que colocam a realidade no mesmo patamar de sonho da virtualida­de. Então, quem descobre um parceiro compatível, através das primeiras impressões trocadas num encontro frente a frente, só tem que agradecer aos céus quando ele é especial e, se não é lindo como um artista de cinema, tem um charme inegável, sabendo combinar palavras e atitudes daquela maneira que nos faz pensar: “Um cara assim, eu não encontrari­a nem se encomendas­se pesquisa ao DataFolha.”

Quando os perfis se encaixam, a sedução é tamanha que as palavras não precisam ser ditas o tempo todo, mesmo porque às vezes soam incompreen­síveis, até que um entenda o repertório do outro. Neste caso, ainda que na hora H você não entenda bulhufas do que ele ou ela dizem entredente­s, relaxe e aproveite o silêncio, ou mesmo a confusão, que é também uma linguagem especial. A paixão é um mistério que entra por todos os sentidos, assim como o criador foi misterioso quando decretou: “E o verbo se fez”... Não sei bem em que língua Deus disse isso, mas de uma coisa tenho certeza: ele sabia do que estava falando.

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Ilustração: Marco Jacobsen

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