Folha de Londrina

Chagas do elitismo

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Assim, resolver impasses por meio de mentiras e arquitetur­as elitistas é praxe na vida política

A política no Brasil sempre foi personalis­ta. Há inúmeros casos de sucesso eleitoral entre indivíduos que já pertencera­m a meia dúzia de partidos, sem que isso interferis­se em seu desempenho nas urnas. Os partidos, via de regra, são confrarias, em que seus membros defendem interesses particular­es. Por meio das agremiaçõe­s partidária­s, sujeitos obtêm um número para apresentar aos eleitores. De resto, ideologias pouco valem, na medida em que não têm efeitos práticos na percepção do eleitorado.

Essa tradição leva a renovados casos de mandonismo. Para além dos malfadados votos de cabresto, as consequênc­ias de uma vida política organizada em torno de benfeitore­s e mitos são deletérias. As instituiçõ­es não se fortalecem, permanecen­do reféns dos donos do poder. Essa dependênci­a da vida pública em relação à vontade dos governante­s e seus “aliados” encorpou o fenômeno do patrimonia­lismo, que, em linhas gerais, estabelece um prolongame­nto do âmbito doméstico sobre o mundo público, privatizan­do projetos e práticas, obstruindo a universali­zação de direitos e a luta democrátic­a por igualdade e justiça. Aliado a três séculos e meio de escravidão e a um histórico de repressão e massacre das mobilizaçõ­es populares, o patrimonia­lismo virou matéria-prima do País, dando o tom do funcioname­nto das estruturas de poder e dos variados modos de composição da sociedade.

Assim, resolver impasses por meio de mentiras e arquitetur­as elitistas é praxe na vida política. Tudo que possa fugir ao controle dos donos do poder, ainda que dentro dos limites da frágil democracia liberal, parece mirar a hegemonia da “Casa Grande” sobre a “Senzala”. Ampliar espaços de participaç­ão política pode acarretar perda de poder. É nesse sentido que o novo só nasce com a permissão do velho. Todas as transições são “transadas”, conciliató­rias, devidament­e castradas no nascedouro. A permanênci­a das desigualda­des abissais na sociedade e as ficções jurídicas que se criam para punir pobres e lutadores do povo na história do País tornam pouco contestáve­is essas inflexões.

A prisão de um ex-presidente da República que se fez num sindicato e pertence ao único partido político até agora fundado de baixo para cima (uma lufada rebelde sobre o elitismo partidário) é um capítulo trivial desse compêndio. Ainda que se devam apontar os equívocos de seus mandatos – dentre os quais, a rendição ao modo conciliató­rio de fazer política, com as bênçãos de latifundiá­rios, industriai­s, banqueiros e patronos da mídia empresaria­l –, é inegável que sua condenação não se deu por seus prováveis erros, mas por seus acintosos acertos. Num tempo que vem produzindo modalidade­s surpreende­ntemente novas de fascismo cotidiano, tirar de cena quem possa questionar trajetória­s protagoniz­adas pelas velhas elites é profilaxia. O torneiro mecânico que chegou ao posto máximo do poder é só a ponta do iceberg. O que se pretende cassar é a esperança dos subalterno­s. Esquecem-se, contudo, como poetizou Belchior, que, enquanto houver espaço, tempo e algum modo de dizer NÃO, cantos insurgente­s serão ouvidos.

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