Folha de Londrina

AOS DOMINGOS PELLEGRINI

- d.pellegrini@sercomtel.com.br

Agora que até ex-presidente come marmitex, ativaram-se minhas lembranças marmiteira­s.

Agora que até ex-presidente come marmitex, ativaram-se minhas lembranças marmiteira­s.

Menino, levava para vó Tiana marmita da Pensão Alto Paraná de meus pais, e uns meninos grandões deram de me assaltar no caminho. Um me segurou, outro destampou a marmita de cima e pegou rodelas de tomate. No segundo dia, pegaram batatas da marmita do meio. Na marmita de baixo sempre ia a carne e, no terceiro dia, antes que pegassem o pescoço de frango de que a vó tanto gostava por ser “gostoso de chupar”, desviei dando volta no quarteirão. Mas no quarto dia me esqueci deles e, quando vi, já chegavam antegozand­o a rapina – porém aí reagi, dei pontapés, fui derrubado junto com a marmita, adultos acorreram, eles levaram uma baita bronca e, depois, passei a passar impávido por ali. Foi minha primeira luta, que apanhando venci.

Eu tinha sete anos e começava a me interessar por histórias, ouvindo a conversa dos peões, mascastes e camelôs hóspedes da pensão, sentados em redor do meio tambor onde mãe fazia sabão. Despejava ali banha, soda cáustica e folhas de mamona, deixando ferver numa fogueirinh­a de paus sobre tijolos, até virar uma massa que deixava esfriar para, no dia seguinte, virar o tambor sobre uma mesa, onde caía o bloco redondo que cortado a facão viraria sabões. Em volta, aqueles homens rudes que, como diziam, não se cansavam de ver mulher trabalhar, contavam causos de assombraçõ­es e lutas de posseiros, que eu ouvia como passarinho bebe água de mina.

No refeitório, eles comiam prato-feito, o ancestral da marmita: prato fundo com muito feijão, morrinho de arroz por cima, onde se enfiavam legumes cozidos, num canto a salada, o bife cobrindo tudo. Minha mãe só permitia na pensão mulher com marido, e, um dia, uma recém casada se perguntou alto: como cortar o bife sem espaço no prato?! Minha mãe explicou, primeiro comesse parte do prato abrindo espaço. A mulher estranhou: começar a comer só arroz-feijão, mas como? Ah, disse minha mãe, a fome ensina.

Na década de 60, fui estudar fora e, para a primeira viagem de jardineira (ônibus de antanho), mãe preparou marmitão, caldeirão cheio de frango com farofa. Eu quis recusar aquela caipirice, afinal já era um rapaz que amava os Beatles e os Rolling Stones, mas ela botou o caldeirão ainda quente no meu colo e lá fui eu. No caminho a jardineira encalhou tanto que, já noite, fome funda, arrisquei comer um pedaço, mais outro, o cheiro assanhando gente em redor. Ofereci, comeram, comemos como irmãos, até trator nos tirar do último atoleiro, o caldeirão raspado pelos pães que alguém também compartilh­ou. Foi a melhor comida da minha vida, falou alguém, e eu falei pois é, feita pela minha mãe.

Na década de 70, já casado eu pegava marmita macrobióti­ca em restaurant­e caseiro, novamente com uma daquelas tradiciona­is marmitas metálicas empilhadas num pegador de haste dupla. Andava encantado com a macrobióti­ca, apesar de naquele restaurant­e as pessoas parecerem cadáveres sentados, talvez pelo tédio de, conforme a macronorma, mastigar cin-quen-ta vezes cada garfada. Então um dia alguém chegou com marmita de papel alumínio e os entediados comentais rodearam a novidade, ora, quem diria, vejam só. Entretanto, bastou um se perguntar se tal marmita não afetaria a pureza dos alimentos e pronto, a novidade foi banida. Lembrei de Rui Barbosa, dizendo que a ignorância é a raiz de todos os males.

Depois fui repórter desta Folha no Cadeião, onde um preso abriu marmita e me mandou cheirar, a comida estava azeda. Fui condenado à prisão, ele falou, não a comer lavagem. Então espero que todos os presos deste país recebam marmitas não só dignas como gostosas, como se feitas por minha mãe.

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R eproduç ão

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