AOS DOMINGOS PELLEGRINI
Agora que até ex-presidente come marmitex, ativaram-se minhas lembranças marmiteiras.
Agora que até ex-presidente come marmitex, ativaram-se minhas lembranças marmiteiras.
Menino, levava para vó Tiana marmita da Pensão Alto Paraná de meus pais, e uns meninos grandões deram de me assaltar no caminho. Um me segurou, outro destampou a marmita de cima e pegou rodelas de tomate. No segundo dia, pegaram batatas da marmita do meio. Na marmita de baixo sempre ia a carne e, no terceiro dia, antes que pegassem o pescoço de frango de que a vó tanto gostava por ser “gostoso de chupar”, desviei dando volta no quarteirão. Mas no quarto dia me esqueci deles e, quando vi, já chegavam antegozando a rapina – porém aí reagi, dei pontapés, fui derrubado junto com a marmita, adultos acorreram, eles levaram uma baita bronca e, depois, passei a passar impávido por ali. Foi minha primeira luta, que apanhando venci.
Eu tinha sete anos e começava a me interessar por histórias, ouvindo a conversa dos peões, mascastes e camelôs hóspedes da pensão, sentados em redor do meio tambor onde mãe fazia sabão. Despejava ali banha, soda cáustica e folhas de mamona, deixando ferver numa fogueirinha de paus sobre tijolos, até virar uma massa que deixava esfriar para, no dia seguinte, virar o tambor sobre uma mesa, onde caía o bloco redondo que cortado a facão viraria sabões. Em volta, aqueles homens rudes que, como diziam, não se cansavam de ver mulher trabalhar, contavam causos de assombrações e lutas de posseiros, que eu ouvia como passarinho bebe água de mina.
No refeitório, eles comiam prato-feito, o ancestral da marmita: prato fundo com muito feijão, morrinho de arroz por cima, onde se enfiavam legumes cozidos, num canto a salada, o bife cobrindo tudo. Minha mãe só permitia na pensão mulher com marido, e, um dia, uma recém casada se perguntou alto: como cortar o bife sem espaço no prato?! Minha mãe explicou, primeiro comesse parte do prato abrindo espaço. A mulher estranhou: começar a comer só arroz-feijão, mas como? Ah, disse minha mãe, a fome ensina.
Na década de 60, fui estudar fora e, para a primeira viagem de jardineira (ônibus de antanho), mãe preparou marmitão, caldeirão cheio de frango com farofa. Eu quis recusar aquela caipirice, afinal já era um rapaz que amava os Beatles e os Rolling Stones, mas ela botou o caldeirão ainda quente no meu colo e lá fui eu. No caminho a jardineira encalhou tanto que, já noite, fome funda, arrisquei comer um pedaço, mais outro, o cheiro assanhando gente em redor. Ofereci, comeram, comemos como irmãos, até trator nos tirar do último atoleiro, o caldeirão raspado pelos pães que alguém também compartilhou. Foi a melhor comida da minha vida, falou alguém, e eu falei pois é, feita pela minha mãe.
Na década de 70, já casado eu pegava marmita macrobiótica em restaurante caseiro, novamente com uma daquelas tradicionais marmitas metálicas empilhadas num pegador de haste dupla. Andava encantado com a macrobiótica, apesar de naquele restaurante as pessoas parecerem cadáveres sentados, talvez pelo tédio de, conforme a macronorma, mastigar cin-quen-ta vezes cada garfada. Então um dia alguém chegou com marmita de papel alumínio e os entediados comentais rodearam a novidade, ora, quem diria, vejam só. Entretanto, bastou um se perguntar se tal marmita não afetaria a pureza dos alimentos e pronto, a novidade foi banida. Lembrei de Rui Barbosa, dizendo que a ignorância é a raiz de todos os males.
Depois fui repórter desta Folha no Cadeião, onde um preso abriu marmita e me mandou cheirar, a comida estava azeda. Fui condenado à prisão, ele falou, não a comer lavagem. Então espero que todos os presos deste país recebam marmitas não só dignas como gostosas, como se feitas por minha mãe.