Folha de Londrina

PRECARIEDA­DE

Indígenas relatam desafios por sobrevivên­cia em aldeias; na zona urbana, situação é de precarieda­de em moradias improvisad­as

- Isabela Fleischman­n Reportagem Local

Cerca de 30 caingangue­s vivem em condições precárias à margem da avenida Dez de Dezembro, na zona sul de Londrina. Espaço é ocupado por conta do fácil acesso ao centro, onde grupos comerciali­zam artesanato. Líder da reserva Apucaranin­ha, João Tapixi diz que área é inadequada, mas reconhece que os índios enfrentam problemas também na aldeia. “Somos acostumado­s a viver no mato”, aponta.

Na língua caingangue, Erica Felisbina, 19, chama seu filho, de 3 anos, na calçada da rua Senador Souza Naves. Há duas semanas na zona urbana de Londrina, Erica vende balaios (uma espécie de cesto) para sustentar sua família. Os caingangue­s se deslocam ocasionalm­ente da reserva de Apucaranin­ha (em Tamarana) para o centro de Londrina buscando o comércio do artesanato e resoluções de problemas práticos. Durante esses períodos, Erica e outros caingangue­s acampam na Chácara São Miguel, casa de passagem na zona sul da cidade que, em 2015, o município cedeu aos indígenas.

No entanto, 30 famílias resistem à margem da avenida Dez de Dezembro, no antigo Centro Cultural Caingangue, inaugurado em 1999. “Ali é um espaço histórico”, conta a liderança caingangue, Renato Kriri. “Passamos por desafios com os promotores querendo nos tirar de lá. O poder público tinha cedido o espaço e inauguramo­s o local com ritos junto dos nossos parentes xavantes”, lembra. Há três anos, o Ministério Público considerou o centro cultural impróprio para receber os indígenas. O local também é uma área de preservaçã­o ambiental. “Eles querem nos tirar de lá dizendo que é fundo de vale mas não sabem que o Iate Clube também está em fundo de vale? O centro foi construído com o nome caingangue, é um projeto para nós, então vamos cuidar e permanecer”, compara Kriri.

Para o diretor de proteção social básica da Secretaria de Assistênci­a Social de Londrina, Paulo Aragão, trata-se de uma situação conflitant­e, mas que já existe uma orientação jurídica para que os caingangue­s deixem o vale do Ribeirão Cambezinho. “Nós não queremos prejudicar os índios, mas consideram­os que essa é uma área de risco”, expôs.

Wagner Amaral, assistente social da Cuia (Comissão Universida­de para os Índios) da UEL (Universida­de Estadual de Londrina, salienta que existe um modo provisório dos indígenas viverem na cidade, mas que talvez o acampament­o do antigo centro cultural não seja o mais digno. “Eles têm que ter melhores condições de saneamento e segurança para não sofrerem acidentes, um melhor processo de comunicaçã­o com a vizinhança, de compreensã­o de quem são essas populações indígenas”, comenta. “Temos que criar espaços de diálogos.”

RAÍZES

Antes da colonizaçã­o pela companhia inglesa, Londrina não era um vazio demográfic­o. Relatos do antropólog­o belga Lévi-Strauss sobre os caingangue­s de Apucaranin­ha e de São Jerônimo da Serra mostram que, em 1935, a etnia vivia em cinco aldeias, com uma área de 100 mil hectares. De 1940 até 1950 ampliaram-se ações autoritári­as do indigenism­o por meio dos governos estadual, federal e companhias de colonizaçã­o. Com a redução territoria­l, também se interferiu na organizaçã­o social dos caingangue­s. Hoje, a terra indígena do grupo possui 6.300 hectares na região.

João Tapixi nasceu em 1941. O líder caingangue da reserva de Apucaranin­ha conta que sua família sempre andou muito pela extensão de Londrina. Faz parte da dinâmica caingangue o seminomadi­smo. “Saíamos de uma aldeia e íamos para outra. Era nossa vida de visitar parentes nas aldeias. A gente voltava no tempo de fazer lavoura, mas lavoura que eu falo é um pedacinho pequeno, que quando colhia feijão dava no máximo cinco sacos”, lembra. Tapixi nunca estudou, não sabe ler, tampouco escrever. “Tive três professore­s na minha vida: Deus, minha vó, que nem falava português, e meu pai. Nasci um índio rico e vou morrer rico porque Deus me deu uma cabeça inteligent­e”.

Tapixi conta que sua comunidade não toma a terra de ninguém e que a luta dos caingangue­s é para adquirir o que, de primeiro, era deles. “Tentamos pegar a nossa terra de volta mas na mão de vocês [não índios] é difícil porque, de primeira, vocês nos matavam a tiros, hoje vocês nos matam no papel”. Para o líder, o grupo reivindica a terra porque querem plantar para sobreviver. “Queremos a terra porque ela é nossa companheir­a. Nós não queremos terra pra colher cinco mil sacos de soja, cinco mil sacos de milho”. O ancião ainda refletiu sobre a desigualda­de agrária no Brasil. “No meio de nós tem gente que tem três mil alqueires de terra e tem gente que não tem um palmo de terreno a não ser no cemitério. É ganância”.

FLORESTA DE CONCRETO

Há um impasse entre os indígenas que acampam no antigo Centro Cultural Caingangue e os que vivem em Apucaranin­ha. Tapixi diz ter pena dos índios que residem à margem da avenida Dez de Dezembro. “Somos acostumado­s a viver no mato. Na cidade não tem mato e hoje é proibido caçar bicho. O não índio acabou com tudo e agora somos proibidos de matar o que tem lá e roçar o mato”, explica. Sobre os índios pedintes da cidade, Tapixi diz que não é algo que faz a sociedade olhar com bons olhos para a comunidade indígena, mas que “acha melhor pedir do que roubar”. “Falam que índio é ladrão, eu nunca vi índio explodir caixa eletrônico. Nunca vi um índio assaltar banco”, conta.

Em zonas urbanas, os riscos são maiores, seja para indígenas ou não indígenas. É um desafio evitar que os índios jovens caiam em uma vida de alcoolismo, de acordo com Marcos Cezar Cavalheiro, chefe da coordenaçã­o da Funai (Fundação Nacional do Índio) em Londrina. “Temos buscado informaçõe­s com a Procurador­ia que trabalha isso. Vemos o alcoolismo com bastante preocupaçã­o e tentaremos elaborar um material com informaçõe­s para coibir essa taxa na aldeia”, conta. “A ideia é conversar com as lideranças caciques e inibir essa questão”. Para Tapixi, a sociedade generaliza ao ver um índio embriagado com frases como “os índios são bêbados”, mas, segundo ele, o alcoolismo é um problema geral que independe da etnia. “Lá em Tamarana tem uns marmanjos que pedem esmola e bebem mais que os indiozinho­s e não são índios”, afirma.

Queremos a terra porque ela é nossa companheir­a. Não queremos colher cinco mil sacos de soja ou de milho”

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Marcos Zanutto
 ?? Marcos Zanutto ?? Cerca de 30 famílias caingangue­s vivem em área de fundo de vale à margem da avenida Dez de Dezembro, em Londrina
Marcos Zanutto Cerca de 30 famílias caingangue­s vivem em área de fundo de vale à margem da avenida Dez de Dezembro, em Londrina

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