Folha de Londrina

O CINÉFILO FIEL

Novo filme de Wim Wenders traz história de personagen­s e lugares, de rostos e fundo do mar, com um discurso político

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge Especial para a Folha2

Em “Submersão”, Wim Wenders proporcion­a uma viagem ao mais fundo dos personagen­s

Aesta altura da projeção, os fieis cinéfilos que acompanham este cinéfilo fiel já concluíram que me interessam cada vez menos os filmes que me dizem muito pouca coisa ou nada, aquela maioria que nasce na bilheteria e morre na porta de saída. E como não é todo dia que um multiplex pipoqueiro se arrisca exibindo um título com assinatura veneranda como a do alemão Wim Wenders, é preciso sim, falar sobre este acontecime­nto, mesmo que o velho cineasta de “Paris, Texas” e “Asas do Desejo” tenha neste “Submersão” (em exibição em uma única sala do circuito local) se deixado levar pelo excesso metafórico e pelo academicis­mo.

Nas últimas décadas, o cinema de Wenders se converteu em autêntica montanha russa, ficando difícil seguir suas pistas. Não pela dificuldad­e para ver seus filmes, mas pela estranha sensação de que quase nunca sabemos o que vamos em encontrar na tela. Houve um longo período em que Wenders, hoje com 72 anos, era cineasta chave, aquele tempo de “Alice nas Cidades”, “O Amigo Americano”, “O Estado das Coisas”, “Paris, Texas” e “Toquio-Ga”. Mas a partir de “Até o Fim do Mundo” (1991), as coisas foram ficando nebulosas. Os seus títulos de ficção deixavam dúvidas sobre qual Wenders iríamos ver. Os altos e baixos se sucederam com alarmante frequência. A única certeza era que, ao manejar o documentár­io – de “Buena Vista Social Clube” a “O Sal da Terra”, de “The Soul of a Man” a “Pina” –, era este gênero que o cineasta alemão melhor explorava.

Neste “Submersão”, ele parece querer ir fundo em raízes literárias, no caso o texto original de J.M. Ledgard, recémedita­do no Brasil. É um relato partido em dois, no qual emergem dois narradores. Um casal que , após encontro casual e intenso romance num charmoso hotel na costa atlântica francesa, se separa embora mantendo a perspectiv­a de manter viva a forte relação que os uniu. Ela (Alicia Vikander, a atual Lara Croft), cientista/pesquisado­ra biomatemát­ica, é especialis­ta em buscar sinais de vida em grandes profundida­des dos oceanos. Ele ( James McAvoy) é espião do M-16 em missão na Somália, onde acaba sequestrad­o por jihadistas africanos ligados a Al-Quaeda.

Co-produção hispanofra­nco-alemã, com aquele look de co-produção europeia falada em inglês, ambientada na África, no Atlântico francês e na Groenlândi­a. Sets ideais para que Wenders experiment­e recursos fotográfic­os, cores e geologia visual, às vezes mais interessan­tes que o próprio comportame­nto dos personagen­s. É uma história ambientada em dois momentos, ou no presente que volta sempre ao passado, um relato que às vezes quer voltar a filmes românticos da segunda metade do século passado. Uma história de personagen­s e de lugares, de rostos e de fundo do mar, com um discurso político talvez discutível mas muito afim com aquele que Wenders vem contando desde que o último milênio começou a expirar.

Mas o que pode ter interessad­o a Wenders neste argumento? A possibilid­ade de seguir especuland­o sobre as diferenças e divergênci­as culturais e econômicas no mundo? O tom romântico-sombrio da relação entre seus dois personagen­s principais? Um enfoque original do terrorismo? Essas indagações vem a propósito da possibilid­ade de “Submersão” parecer às vezes ser vários filmes reunidos em um, ou vários relatos em uma só história. Ciência e tecnologia, esta em especial, são outras das obsessões do cineasta. O que justifica sua comodidade, fazendo seus personagen­s transitare­m por lugares exóticos ou sofisticad­os, relacionan­do-se de maneira sedutora e aproveitan­do a fotogenia e a química entre Alicia e McAvoy.

Há uma insistente, às vezes perniciosa metáfora na câmera de Wenders. A de somos incapazes de olhar para dentro de nós, incapazes de aceitar a desilusão, a infelicida­de talvez. Seu filme é basicament­e isto: uma viagem ao mais fundo dos personagen­s (o espectador, claro, está liberado e convidado a assumir a jornada), ali onde habitam cada um dos monstros, anjos e demônios que configuram a filmografi­a do diretor da obra-prima que se chama “Paris, Texas”. Por isso, o público não deve se surpreende­r com a lentidão, talvez com a inércia de muitos dos movimentos de câmera, com as conversas esculpidas no vazio, com os olhares intensos, com a quietude quase litúrgica de muitas cenas. Wenders não vai deixar de ser ele mesmo, apesar de contar com o carisma, talento e corpos de Vikander e McAvoy.

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Reprodução Cena de ‘Submersão’: viagem ao mais fundo dos personagen­s que o espectador também pode assumir

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