Folha de Londrina

AVENIDA PARANÁ

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Com um saco de lixo na cabeça, moça faz performanc­e durante mesa-redonda no campus da UEL

A performer apareceu logo no começo da palestra, enquanto eram apresentad­os os componente­s da mesa redonda. Caminhou por entre o público, silenciosa­mente. Não era possível ver seus olhos, pois um saco de lixo lhe cobria a cabeça; tinha pernas e braços tingidos por uma fina camada de lama e movimentos às vezes sinuosos, às vezes espasmódic­os. Ficou por alguns segundos parada, como uma daquelas estátuas vivas que a gente vê no Calçadão. De repente, caiu. Agora, arrastava-se no chão como... como a serpente.

O cronista, quase um estrangeir­o naquele lugar, achou tudo aquilo muito divertido e fez sinal pedindo à fotógrafa que registrass­e a cena. Durante os últimos dias, ele se havia preparado para todos os tipos de reação ou provocação; sabia que aquele ambiente não lhe era de todo amigável, embora tivesse muitos amigos ali. Sim, uma das possibilid­ades que ele imaginou era uma intervençã­o cênica durante a sua palestra; um happening, como se dizia nos anos 70. Agora que a hipótese se concretiza­va diante dele, invadia-o uma estranha paz, uma absurda alegria.

Olhando para a moça, que se levantava outra vez, sem dizer uma palavra, ele lembrou duas passagens — uma da literatura, outra do cinema. A primeira foi a cena em que Dom Quixote encontra os penitentes encapuzado­s, que levam um andor. A segunda foi uma cena de “O Homem Elefante”, filme de David Lynch que muitos pesadelos lhe provocara na infância. O Homem Elefante também usava um capuz. A certa altura, ele recita uma passagem do Evangelho e depois grita, com voz lancinante:

— Eu sou um ser humano! Eu sou um ser humano!

Mas a moça do saco na cabeça não dizia nada. Apenas, por duas ou três vezes, pontuava as frases do palestrant­e convidado com sons quase imperceptí­veis.

A terceira lembrança do cronista veio da história: um algoz da Revolução Francesa. Mas felizmente não havia nenhuma guilhotina; a paz e a alegria permanecer­am junto com ele, como presenças invisíveis e inesperada­mente concretas.

Houve ainda uma quarta imagem mental despertada pela moça. Esta, mais engraçada; foi preciso segurar o riso. Vendo a performer ali tão parada, tão fixa, tão necessitad­a de atenção, surgiu-lhe a figura de... Dilma Rousseff. “Talvez a companheir­a Vanda tenha usado um capuz durante alguma operação nos anos 70”, pensou ele.

Depois que tudo terminou, o cronista aproximou-se da moça para cumpriment­á-la. Era um agradecime­nto. Infelizmen­te não houve chance para ele lhe contar que já fizera parte de um grupo teatral em 1985 e 1986, tendo participad­o de muitos e muitos happenings iguais àquele.

Separaram-se, o cronista e a moça, talvez para sempre. No entanto, houve tempo suficiente, apenas um segundo, para ele saber que ela era uma garota de traços delicados, os olhos um pouco perdidos. Sem dizer nada, o cronista pensou:

“Eu sou um ser humano. Mas será que ela acredita nisso?”

E foi embora pelo campus, levando no coração uma estranha paz, uma absurda alegria.

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