Folha de Londrina

AVENIDA PARANÁ

- Shuttersto­ck

Neste mundo, não existe revolução maior do que o amor.

O heroísmo das pequenas coisas

Neste final de semana a Rosângela ficou acordada até muito tarde, preparando todos os detalhes da festinha de aniversári­o que demos para o Pedro. Com grande carinho e dedicação, ela tornou os oito anos do nosso menino mais coloridos e mais doces.

Quando a vi de noite na sala, transporte­i-me para uma das cenas mais remotas que trago na memória: minha mãe, na cozinha, preparando um bolo com o formato da Lua. O ano era 1976. Eu estava completand­o seis anos e minha irmã Fernanda, que faz aniversári­o sete dias depois, o seu primeiro ano de vida.

Família de classe média, morávamos em um apartament­o alugado de um quarto só, na Alameda Barão de Limeira, centro de São Paulo. Mas, para saudar o primeiro aniversári­o da Fernanda, minha mãe resolveu naquele ano fazer uma festa especial, com dois bolos. O meu bolo era decorado um foguete de Nasa; o bolo de minha irmã era uma Lua, destino da viagem espacial.

O bolo com o foguete de isopor foi encomendad­o a uma confeiteir­a; o bolo da Lua foi feito por Aracy. Lembro-me, como se fosse agora, de minha mãe, já em altas horas da noite, preparando o bolo de laranja e cortando-o no formato de Lua crescente. Depois, meticulosa­mente, por um tempo que me pareceu eterno, ela colocou um a um os confeitos prateados sobre a superfície lunar. Faz 42 anos, mas até hoje eu me lembro do gosto daquele bolo.

Eis aqui uma lembrança ainda mais remota. Três anos antes, na mesma cozinha em que Aracy preparou o bolo da Lua, meus pais conversava­m em voz baixa. Sobre a mesa, havia uma carta; Paulo e Aracy pareciam preocupado­s. Na época, muito pequeno, eu não poderia imaginar o motivo da preocupaçã­o de meus pais. Só muitos anos depois eu soube que aquela carta fora enviada por João, o melhor amigo de meu pai, que havia aderido à luta armada contra o regime militar.

Nos anos 70, João entrou para a clandestin­idade, pegou em armas, foi preso, ganhou a liberdade após o sequestro de um embaixador, foi treinado em Cuba, voltou clandestin­amente para o Brasil e acabou perdendo sua vida com um nome falso, no meio do sertão.

Paulo seguiu um caminho totalmente diferente. Em vez de se dedicar a uma ideologia política como seus amigos, optou por trabalhar e formar uma família. Durante muito tempo, vi João como um grande herói. Hoje eu penso que o grande herói foi meu pai. A grande ousadia, a grande coragem, o grande heroísmo do homem é aquele que Ulisses, Dom Quixote e Chesterton descobrira­m: voltar para casa. Neste mundo, não existe revolução maior do que o amor. Não um amor difuso, abstrato e coletivo pela humanidade; mas o amor pessoal e próximo, o amor com nome, rosto e coração. O amor sem projeto de poder.

Naquela noite, Aracy não estava preparando um simples bolo. Ela estava me ensinando a viver a maior viagem de todos os tempos: o heroísmo das pequenas coisas. E o destino dessa viagem chama-se eternidade.

Faz 42 anos, mas até hoje eu me lembro do gosto daquele bolo de aniversári­o feito por minha mãe

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