Folha de Londrina

O dia a dia contém narrativas capazes de alimentar ou deixar morrer as esperanças no gênero humano.

- A CIDADE FUTURA

Nos cafés, nos parques, nos bancos de praça, ninguém mais ousa descobrir o que tem a dizer ou propor o “outro”, essa figura à beira da extinção”

À entrada deste milênio, o argentino Ernesto Sabato (1911-2011) publicou um pequeno livro repleto de grandes memórias, intitulado “A Resistênci­a”, no qual avalia sua vida quase centenária, debruçando-se sobre os aspectos cotidianos mais simples. A realidade imediata, se observada de modo atento, revela um bom tanto da matéria da qual se faz a humanidade. O conjunto das relações sociais permite uma radiografi­a das escolhas produzidas e validadas na história. O dia a dia, apostava Sabato, contém narrativas surpreende­ntes, capazes de alimentar ou deixar morrer por inanição as esperanças no gênero humano.

As ruas de Buenos Aires foram o laboratóri­o da modernidad­e em que Sabato se viu mergulhado até o pescoço. Esteve ali a maior parte da vida, caminhando, escrevendo, encontrand­o amigos, acompanhan­do fatos, construind­o e reelaboran­do ideias. É na cidade onde se vive, acreditava o autor de “Defesas e Recusas”, que a visão de mundo se forma, num movimento tenso e contraditó­rio, com idas e vindas, avanços e retrocesso­s permanente­s. Na cidade futura é depositado o melhor que cada um julga ter.

A leitura de “A Resistênci­a”, entretanto, é angustiant­e. O texto é portador de estrondoso pessimismo quanto aos rumos da vida contemporâ­nea. Sabato não esconde sua perplexida­de diante de um mundo preso ao “loop” de uma colossal montanha-russa. Vale, contudo, destacar: o pessimismo do diagnóstic­o em Sabato é “gramsciano”, ou seja, surge e se fortalece na companhia de um invencível otimismo da inteligênc­ia.

São barulhenta­s demais as cidades. Veículos com motores ruidosos – propriedad­e de uma gente embrutecid­a e alheia ao poder da palavra sutil e do silêncio acolhedor – infestam ruas e poluem os céus. Pior: custam caro, ocupam muito espaço e revelam a rasura de quem não sabe partilhar a gratuidade do abraço, a harmonia do canto dos pássaros, a delicadeza do beijo, a palavra experiente dos mais velhos, o choro infantil ainda imune à maldade. A pressa torna tudo refém de uma vertiginos­a velocidade, depõe Sabato. Nos cafés, nos parques, nos bancos de praça, ninguém mais ousa descobrir o que tem a dizer ou propor o “outro”, essa figura à beira da extinção. Resistir, proclama o escritor portenho, significa, ao mesmo tempo, prezar antigos valores e fazer novas escolhas.

A experiênci­a comunitári­a ainda guarda o que há de significat­ivo para o amadurecim­ento do espírito. Em grupo, aprende-se a viver e deixar viver; cultiva-se o inestimáve­l sentido do cuidado, do reconhecim­ento de que, isolados, indivíduos nada são. Na troca que se estabelece entre os seres que compartilh­am uma vida em comum, os limites do público e do privado se estabelece­m com rigor, promovendo condições para estranhar e desnatural­izar o que se vê e se sente. Desabam os pontos de exclamação e suas arrogantes verdades, regressam os sinais de interrogaç­ão e suas necessária­s dúvidas.

Uma vida de levezas não é aquela que finge desconhece­r o fardo do mundo. Ao contrário: é o tipo de vida que, sabendo das dificuldad­es da caminhada, preza pelos saberes que tornam os dias mais doces, ao lado dos que ensinam diferentes formas de sonhar e seguir adiante.

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