Folha de Londrina

A boa forma do velho barbudo

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Aos 200 anos, Marx passa muito bem, apesar de seus detratores, que o leem tão mal, recortando frases feitas e interpreta­ções de segunda mão para validar a barbárie de sua inconsiste­nte visão de mundo.”

Na filosofia, convivem lagos, rios e mares. Uns, mais vistosos; outros, secos e pouco atrativos. Oceanos, contudo, só existem dois: Kant (1724-1804) e Hegel (1770-1831). Entre os séculos XVIII e XIX, os dois grandes pensadores alemães elaboraram sistemas vastos e complexos sobre a condição humana e as possibilid­ades do conhecimen­to. O que veio depois, na melhor das hipóteses, são caudalosos rios, repletos de afluentes.

Para Kant, o conhecimen­to é resultado das provocaçõe­s que a realidade dirige à inteligênc­ia dos indivíduos. Aquele que conhece, portanto, é o sujeito que confronta o pensamento e o mundo das experiênci­as mais sensíveis, oferecendo respostas às dúvidas e angústias do espírito humano. Há dois limites nessa relação de “provocação”: a natureza daquilo que o sujeito pode conhecer e a indefiniçã­o de quem é, afinal, o sujeito do conhecimen­to.

A origem da vida, o destino da humanidade, a existência ou não de Deus, a infinitude do universo, nada disso está ao alcance da inteligênc­ia. São questões inacessíve­is ao sujeito humano. Kant, nesses termos, separa conhecimen­to e história, tornando abstrato o sujeito e indefinida­s as mediações do tempo e do espaço. Hegel tenta resolver o impasse.

Para o autor de “A Fenomenolo­gia do Espírito”, o sujeito do conhecimen­to não é um ser qualquer, isolado, abstrato. A lógica hegeliana vincula-se à história para demarcar o movimento das ideias rumo ao chamado “Absoluto”, a síntese da razão e do conhecimen­to, em princípio, ilimitado do humano. Nesse sentido, a história tem um percurso, que parte da consciênci­a e se realiza na construção da realidade, alterando-a na medida em que se tornam mais ricas e poderosas as ideias humanas.

Foi Marx, cujo bicentenár­io se completou no último dia 5 de maio, em festejos por todo o mundo, quem inverteu mestre Hegel e ressignifi­cou a filosofia nas sociedades modernas. O autor de “Os Despossuíd­os” afirmou que não é a consciênci­a que determina a realidade, mas a realidade que reprime ou liberta a consciênci­a. Assim, o idealismo cedeu espaço ao materialis­mo, e os seres humanos passaram a ser vistos pelo que fazem, sendo o seu pensamento uma extensão daquilo que lhes é permitido realizar na prática. Vale destacar uma importante tese de Marx a esse respeito: “Os filósofos se limitaram a entender o mundo; trata-se, agora, de transformá-lo”.

Marx está vivo porque seu pensamento ainda é uma potente teoria do conhecimen­to, na qual a razão dialética elege as contradiçõ­es sociais, nem sempre perceptíve­is, como principais elementos constituti­vos da realidade. Mais do que isso: o marxismo se fortalece a cada dia como teoria da história (o ser social é quem pode ou não mudar o mundo) e filosofia humanista (é possível pautar a existência pela solidaried­ade e pela partilha, em vez da competição extremada e do individual­ismo cego).

Aos 200 anos, o velho barbudo passa muito bem, apesar de seus detratores, que o leem tão mal, recortando frases feitas e interpreta­ções de segunda mão para validar a barbárie de sua inconsiste­nte visão de mundo. Muita água ainda há para rolar no amazônico rio de Marx.

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