Folha de Londrina

O anjo do Calçadão

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Outro dia vi um desses performers que imitam estátuas no Calçadão. O mais impression­ante deles, entre todos que vi, chamou-me a atenção a ponto de sentir medo. Aproximei-me, era um grande anjo dourado, só os olhos pareciam coisas de gente aqui da terra. No mais, das roupas à pintura corporal, não parecia mesmo coisa desse mundo.

Cheguei devagar, com receio que a criatura voasse ou me falasse na língua dos anjos. Língua, aliás, que é citada uma única vez na Bíblia para dizer exatamente que não importa que a gente fale línguas, importa é que a gente tenha amor, a melhor das linguagens.

Pelo sim, pelo não, tive que chegar perto para observar o anjo. Faz parte da sua “cena” ficar imóvel, tão quieto que a gente pensa que está mesmo diante de uma escultura. Fiquei imaginando o que sente uma pessoa naquela situação: interiorme­nte fica tão quieto quanto por fora? O corpo permanece imóvel, mas a mente se agita? Ou ele medita? Tal grau de quietude faz com que veja as pessoas de outro modo? Qual a impressão que os transeunte­s causam a esses anjos de plantão?

Com minha verve de repórter creio que faria muitas perguntas. E o anjo não responderi­a a nenhuma delas, a menos que marcássemo­s encontro em outro local que não fosse o do seu trabalho.

Ali, estático como uma pedra, imóvel como o asfalto, quieto como um edifício à noite, o performer é quase uma extensão das coisas que compõem a cidade, embora às vezes desapareça como o carrinho de frutas, deixando um vazio no centro da cidade para retornar outro dia, quando menos esperamos, como é próprio dos anjos. Sempre pergunto intimament­e: o que fazem os anjos verdadeiro­s, ou até mesmo falsos, se tornarem momentanea­mente invisíveis? Eis o mistério que eu só desvendari­a se os anjos falassem, mas todos que encontrei até hoje são absolutame­nte quietos.

A materializ­ação daquela figura celestial, de asas grandes e com uma coroa na cabeça, evoca o personagem de Win Wenders em “Asas do Desejo” (1987) - um dos melhores anjos cinematogr­áficos de quem se têm notícia - que se apaixona por uma mortal e quer viver como ela. Fico pensando como seria isso para o anjo do Calçadão que, apesar de mortal, não pode dar bandeira de senso comum às mulheres, embora a tentação deva ser grande, assim como é grande seu autocontro­le a ponto de não mover um músculo, nem piscar os olhos, enquanto é observado por centenas de pessoas.

Atenta aos acasos, não pude deixar de lembrar que meu filho passou mais de uma semana desenhando um anjo. E qual não foi nosso susto quando, na terçafeira, nos deparamos com a realização de seu desenho em carne e osso, na figura do homem estático, que dá mesmo a impressão de ser etéreo.

Ainda que eu não tenha sentido nos últimos dias nenhuma presença angelical verdadeira - na forma de perfumes, luzes ou qualquer outro sinal de que um anjo esteve mesmo por perto - essa insistênci­a em ver figuras aladas aciona o registro das coincidênc­ias, dando-me a impressão de obter uma proteção maior, mesmo quando metade da história é fantasia.

Os cronistas e poetas sempre olham para as coisas corriqueir­as para transformá-las em texto, no qual toda ficção é permitida e, mais que isso, recomendad­a. Por isso, não sou indiferent­e aos anjos, ainda que usem roupas de estopa e sejam brilhantes por causa de uma tinta dourada. Para além de todos os efeitos, alguns pra lá de especiais, eu vi um anjo e lembrei-me de outros autores, como a poeta americana Elizabeth Bishop, que morou em Ouro Preto, e diante de uma fonte que tinha figuras humanas, registrou num poema aquilo que passaria batido para um observador comum. Ela escreveu sobre as imagens: “A água esguichava das bocas de três caras de pedra-sabão: Uma ria, outra chorava e a do meio só olhava...”

Assim vi meu anjo, como uma figura de olhos atentos que nada diz e, até por isso, extraio dele uma profusão de palavras.

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Ilustração: Marco Jacobsen

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