Arte, um objeto de censura?
O filósofo Eduardo Wolf faz palestra nesta terça-feira (15) sobre o tema ‘Arte e Política’, dentro da programação do evento ‘UEL – A Casa da Tolerância’
No Brasil, a censura, aquela “velha senhora”, parecia estar sepultada desde os anos da ditadura. Mas mecanismos de boicote, guerrilhas culturais e movimentos em favor de rígidas classificações etárias em galerias e museus - nos quais não se viam tais investidas há décadas – transformam de novo a arte em objeto proibido, colocando o público e os artistas numa circunstância inimaginável para quem passou os anos 1980 e 1990 assistindo livremente a performances, espetáculos e outros tipos de manifestações culturais.
Da censura à mostra Queer Museu, em Porto Alegre, passando pela performance “La Betê”, de Wagner Schwartz, no MAM/SP, até o projeto de lei que tramita na Câmara de Vereadores de Londrina para transformar o Promic - Programa Municipal de Incentivo à Cultura – numa peneira da moralidade, com proibição, por exemplo, de espetáculos com nudez artística para menores de 18 anos, tudo parece indicar que os “tempos mudaram.” Só não se sabe se para melhor, para pior ou a partir de quais parâmetros de curadoria.
Alguns desses pontos podem ser abordados na palestra “Arte e Política” que acontece nesta terça-feira (15), no anfiteatro do CCLH da Universiade Estadual de Londrina (UEL), às 19h30, tendo como convidado Eduardo Wolf, editor da plataforma multimídia “O Estado da Arte”, no jornal O Estado de São Paulo. A palestra faz parte do projeto de extensão “UEL – A Casa da Tolerância”, idealizado e coordenado pelo professor Gabriel Giannattasio, do Departamento de História da UEL. O projeto conta com palestras e debates que irão se estender até o fim de 2018.
Wolf é Doutor em Filosofia pela USP, foi pesquisador visitante na Universidade Ca’Foscari (Veneza - Itália), colaborador da revista Veja e colunista do jornal Zero Hora (Rio Grande do Sul). Editou os volumes “Pensar a Filosofia” e “Pensar o Contemporâneo”, lançados pela Arquipélago Editorial, e traduziu os ensaios de T.S. Eliot, entre outras obras. Foi secretário-adjunto de Cultura de Porto Alegre (2017). É curador-assistente do projeto “Fronteiras do Pensamento.”
Leia a seguir a entrevista exclusiva de Eduardo Wolf, feita por e-mail, à Folha 2.
Vivemos no Brasil uma dicotomia de pensamentos que chega à censura às manifestações artísticas. Neste sentido, há excessos tanto dos grupos conservadores como dos chamados progressistas. De um lado, tivemos censura a mostras de arte como a exposição Queer Museu, em Porto Alegre – considerada “imoral” sob alguns aspectos – e a crítica rancorosa, por parte de alguns, à performance “La Betê”, de Wagner Schwartz, no MAM, onde se vislumbrou, até mesmo, incitação à pedofilia. Tivemos também tentativa de boicote por questões identitárias ao filme “Vazante”, de Daniela Thomas, e censura ao grupo de teatro Os Fofos Encenam pelo uso de ‘blackface’ no espetáculo “A Mulher do Trem”. Qual sua opinião sobre esses movimentos de intolerância?
O livro que estou escrevendo para a editora Record, “Guerra Cultural”, trata precisamente da história por trás disso. Esses episódios todos a que você se refere são a cara visível desse processo chamado “guerra cultural”, uma dinâmica social muito típica da sociedade americana dos últimos 40, 50 anos, e que chegou para valer no Brasil com a imensa popularização das redes sociais e a veiculação, por meio delas, de uma profusão de ideias e convicções antes claramente ausentes do circuito convencional do debate público. Em primeiro lugar, o que caracteriza essa dinâmica social das guerras culturais é uma percepção de que uma essência, uma identidade profunda e inalterável da nação ou da sociedade – frequentemente os hiperbólicos falarão até mesmo do Ocidente – está ameaçada. Assim, qualquer posição divergente dessa concepção essencial e profunda de uma identidade coletiva (o Brasil, os Estados Unidos, o Ocidente), necessariamente será uma inimiga de morte, uma ameaça radical e inaceitável, pois afeta uma identidade tradicional e ortodoxa. Da mesma forma, na lógica das guerras culturais, quem desafia a identidade tradicional não está apresentando uma ideia divergente, ou colocando em circulação novas concepções: está derrotando um inimigo intolerável, isto é, a sociedade tradicional e ortodoxa. Como você pode ver, essa lógica elimina o diálogo: o que um e outro lado querem é silenciar ou eliminar o outro. Por que este fenômeno de censura, aparentemente ador- mecido, eclodiu agora?
Para explicar isso, é preciso entender que houve uma mudança nos ambientes tradicionais da cultura (os meios artísticos, certos setores da imprensa e do mercado editorial, além, claro, da Universidade): há mais ou menos uma década, a absoluta e sufocante hegemonia da esquerda (especialmente a de orientação marxista, mas não apenas ela) nesse circuito começou a ser quebrada. Hoje, há editoras, professores, alunos, artistas, cineastas, escritores e intelectuais com público cuja plataforma é o ataque à esquerda e a defesa do liberalismo, do conservadorismo ou de alguma variante disso. Isso não existia no Brasil há muito tempo. Logo, pela primeira vez em muitas décadas, temos efetivamente dois lados em um conflito de ideias.
Ocorre que a qualidade desse conflito, não apenas pela dinâmica característica das guerras culturais a que eu me referi antes, mas também pela baixa qualidade da circulação de ideias no País – em geral –, é lamentável. Não só isso como, mais recentemente, a esse quadro veio a se somar um novo elemento nos campos de batalha da guerra cultural: as chamadas políticas identitárias, que apregoam a bizarra tese de que somos definidos unicamente por uma condição como nossa etnia ou sexualidade, e que, pasme!, essa condição determina nossa resposta ao mundo ao nosso redor – o que faz com que se acuse de racismo, machismo, homo/transfobia qualquer coisa que não se enquadre com minha visão de mundo, definida a partir dessa identidade, o que é uma nova e radical forma de sectarismo e intolerância. Esses três elementos: a dinâmica radical e eliminatória da guerra cultural; a emergência de um campo intelectual/cultural liberal e conservador para se opor à hegemonia de décadas da esquerda na área; as políticas identitárias com sua nova radicalidade sectária – explicam o fenômeno de intolerância nos meios artísticos perfeitamente exemplificados por você na sua questão.
Em âmbito nacional e até local, câmaras políticas e conselhos culturais se debatem, manifestando-se contra ou a favor da censura, pedindo classificação etária para as obras, antevendo a “obscenidade” no que é, muitas vezes, parte da expressão corporal, porque a arte, muitas vezes, é corpo e a nudez, especialmente, parece incomodar mais hoje do que há 30 anos. Nunca se tentou colocar tantos rótulos e classificações sobre obras artísticas, dividindo-as entre o bem o mal. Qual o ganho ou a perda que isso causa à liberdade de expressão e ao conhecimento, tendo em vista que a nudez é parte integrante da arte e tão velha quanto o mundo?
Em 1914, uma sufragista radical entrou na National Gallery, em Londres, e atacou o quadro de Velázquez (de 1651!) “A Vênus ao Espelho.” Ela poderia ter escolhido inúmeros outros para o seu protesto, mas foi, obviamente, aquele. Ora, irrupções moralistas ou irracionais contra o nu na arte podem ocorrer em qualquer época, mesmo na nossa. Só os muito incautos acham que pode haver superação global e massiva de preconceitos e tabus – acreditam nisso justamente porque se recusam a entender a natureza humana, aliás.
Outra coisa completamente diferente é o que o suposto progressismo pátrio quer fazer, isto é, tratar a visitação de crianças de 10, 11 anos de idade a uma exposição com obras de sexualidade forte e explícita, dessas de deixar as fotografias do Mapplethorpe (N.R.: Robert Mapplethorpe, fotógrafo norte-americano, 1946/1989) na seção de livros para colorir de tão inocente, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Não, não é, e não há moralismo algum nisso. O mesmo vale para a forma como a presença de uma menina de quatro ou cinco anos de idade incentivada a tocar o corpo de um homem adulto nu foi “naturalizada” pela esquerda, e as críticas ao episódio vendidas pela esquerda como moralismo. A mesma esquerda que, aliás, luta para controlar propaganda de brinquedos para crianças, imagens para crianças, videogames para crianças – tudo precisa ser regulado e controlado pelo bem das crianças, para essa esquerda, menos brincar com peladões no museu. Bem, é difícil dizer se isso é hipocrisia ou coisa pior.
A esquerda, sempre identificada com o progressismo, hoje assiste à ascensão da chamada “nova direita”. Na sua opinião, essa denominação prevê mudanças do comportamento conservador ou é apenas uma nova embalagem para uma velha ideologia?
No Brasil, esquerda, centro e direita podem ser resumidas em uma única palavra: “atraso”. Talvez duas: “reacionarismo” entraria bem, aqui. Nossa esquerda é reacionária: estatista, intervencionista, autoritária, persecutória e inabalavelmente bajuladora de todos os regimes ditatoriais que diversas formas de marxismo e de nacionalismos terceiromundistas deram ao mundo. É puro atraso. O que você chama de conservador, no Brasil, na verdade é um bloco permanente de poder que, entra governo, sai governo, segue governo. Seu ‘motto’ é “sempre no governo, muito fisiologismo e corrupção de um jeito ou de outro”. Do ponto de vista da política partidária, simplesmente não há nenhuma alteração nesse quadro: a esquerda segue atrasada e autoritária, a direita segue fisiológica e corrupta. Socialmente, contudo, há uma novidade: o que se chama de “nova direita” é a formação de um bloco de oposição continuada aos valores do lulopetismo. Mas é um grupo tão heterogêneo que, objetivamente, não sei se o rótulo faz algum sentido. Mas serve de consolo para o lulopetismo achar que tem algum inimigo único.
No Brasil, esquerda, centro e direita podem ser resumidas em uma única palavra: “atraso”