Folha de Londrina

Persistênc­ia e superação

Primeira caingangue a ter uma especializ­ação pela UEL, Damaris Kaninsãnh, desata nós da academia

- Geral@folhadelon­drina.com.br Isabela Fleischman­n Reportagem Local

Em uma tarde fresca de maio, Damaris Felisbina, 27, de nome caingangue Kaninsãnh, recebeu aplausos junto da aprovação de sua monografia de especializ­ação em linguístic­a pela UEL (Universida­de Estadual de Londrina). Ela é a primeira da etnia com uma pós graduação na UEL. Damaris é da terra indígena Apucaranin­ha, localizada no município de Tamarana. Para a especializ­ação, Kaninsãnh percorria semanalmen­te o trajeto de 60 quilômetro­s mais 30 de estrada de chão.

Damaris segurava uma garrafa verde fluorescen­te, apreensiva ao esperar a nota de sua banca. Vestia um vestido branco com detalhes amarelos e azuis. Sandália e acessórios caingangue­s feitos por seu primo. Com sorriso tímido, falava um português de sutil sotaque. Consultava com frequência seu smartphone, aparelho que a ajudou a ler textos fundamenta­is para a pós graduação, além de gravar a conversa dos indígenas: seu trabalho estuda a variação linguístic­a de um vocábulo caingangue. Algo como no português “Vossa Mercê” virou “vosmicê” e depois “você”.

O orientador de Damaris, professor Marcelo Oliveira, explica que tinha de ser ela a fazer esse estudo. “Tinha uma festa, o pessoal estava se arrumando e a Damaris ia lá, conversava com o celular gravando, captava o que ela queria e depois ia transcreve­r”. Oliveira não acredita que estudos sobre indígenas têm de serem feitos por indíKanins­ãnh genas por ser mais fácil, mas sim, por ser mais justo. “A gente não está dentro. Ainda que eu morasse em Apucaranin­ha não estaria dentro, precisaria ter nascido lá”, pontua. “A gramática pedagógica caingangue não sai sem indígena. Não adianta a gente fazer a pesquisa, entender a língua e escrever. Os indígenas têm que escrever. Estamos aqui para dar o suporte teórico. O resto é com eles”, disserta.

Damaris aprimorou o português ao longo da graduação em letras, mas, durante a pós, Marcelo percebeu que ela “enferrujou”. “Como ela saiu da graduação, ficou um ano parada e depois fez a especializ­ação, parou o contato com o português. Ela vem de vez em quando para o shopping em Londrina e volta embora, então é a semana inteira falando caingangue”, justifica. A língua foi uma barreira que Damaris quebrou. O preconceit­o, o transporte, as regras acadêmicas e o dinheiro foram outras. “Para mim é muito gratifican­te este momento, como indígena, depois de passar por muitas dificuldad­es da graduação e especializ­ação, não tenho palavras para descrever o que estou sentindo”, reconhece. “Dificuldad­es financeira­s, dificuldad­es de entender o português, explicar as teorias usadas na monografia, ir e voltar todo dia para a aldeia, chegar uma e meia da manhã em casa, trabalhar e depois vir assistir as aulas”.

leciona caingangue e português na aldeia para o Fundamenta­l 2 e o Ensino Médio. Nascida em Apucaranin­ha, em oito de abril de 1991, Damaris Felisbina é a primeira com graduação da sua família. Tem quatro irmãs, duas hoje cursam artes e design de moda pela UEL. Cumprindo um anseio do pai, Manoel “Norég Mág” Felisbino, que iniciou o curso de letras “numa época em que o preconceit­o era muito maior, não tinha dinheiro para vir, ele que bancava a vinda dele, então começou a não dar certo”, conta o orientador de Damaris, Marcelo. “Tudo que ela tem feito, ela lembra o pai. ‘Em homenagem ao meu pai, porque meu pai tentou fazer e não conseguiu’”, continua. A mãe, Jandira Felisbina “Gasanh”, 53, também finalizará a graduação em letras em junho. “Estamos sempre juntos, dando força um para o outro”, alegra-se Jandira, que iniciou a formação pela UEL aos 47 anos.

“O indígena não pensa só nele. Ela se formou para ajudar a aldeia e os alunos da escola em que trabalha”, assegura a mãe, que, junto do pai, sempre apoiou Damaris. A especialis­ta afirma que o que mais gosta de fazer é dar aula, e que é gratifican­te ver seus alunos avançando. “Teve uma aluna minha que passou no vestibular da Federal de Santa Catarina”, lembra.

“Ela conseguiu”, conta Jandira sobre sua filha. Damaris alega que sua graduação foi difícil, porque na época não havia transporte. Teve de se mudar para o distrito de Lerroville e deixar sua filha, de sete meses, na aldeia. Kaninsãnh lembrou a dificuldad­e de deixá-la para iniciar a graduação. “A gente é acostumado a ficar com a família”, conta. “O que eu mais pensei quando quis desistir foi nos meus professore­s, que sempre me incentivar­am a continuar estudando mesmo com dificuldad­es. Uma professora de educação física que me deu aula no Ensino Médio falava para eu seguir. Ela disse uma vez que mesmo com os filhos a gente tem que continuar estudando, porque estamos pensando no futuro deles”, relembra.

Na sala 129 do CCH (Centro de Ciências Humanas) da universida­de, duas irmãs, pai, mãe, amigos e professore­s comemorara­m o pioneirism­o de Damaris. Sua filha, hoje com sete anos, não veio. “Não quis vir, ela preferiu esperar a vó dela em casa. Não veio toda a família por causa de transporte”, conta. Kaninsãnh incentiva seus alunos a continuare­m os estudos. “A gente dá força para eles estudarem, mas sei que há preconceit­o”, comenta. “Eu passei por preconceit­o, tudo que é diferente passa por preconceit­o”. Ela conta que “têm situações que nem gosto de lembrar” ao pegar ônibus de Tamarana para Londrina. “É triste o preconceit­o ao indígena”.

São Paulo - O indígena não pensa só nele. Ela se formou para ajudar a aldeia e os alunos da escola em que trabalha”

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Isabela Fleischman­n Damaris “Kaninsãnh” Felisbina, primeira especialis­ta caingangue pela UEL, durante anúncio da nota da monografia
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