Persistência e superação
Primeira caingangue a ter uma especialização pela UEL, Damaris Kaninsãnh, desata nós da academia
Em uma tarde fresca de maio, Damaris Felisbina, 27, de nome caingangue Kaninsãnh, recebeu aplausos junto da aprovação de sua monografia de especialização em linguística pela UEL (Universidade Estadual de Londrina). Ela é a primeira da etnia com uma pós graduação na UEL. Damaris é da terra indígena Apucaraninha, localizada no município de Tamarana. Para a especialização, Kaninsãnh percorria semanalmente o trajeto de 60 quilômetros mais 30 de estrada de chão.
Damaris segurava uma garrafa verde fluorescente, apreensiva ao esperar a nota de sua banca. Vestia um vestido branco com detalhes amarelos e azuis. Sandália e acessórios caingangues feitos por seu primo. Com sorriso tímido, falava um português de sutil sotaque. Consultava com frequência seu smartphone, aparelho que a ajudou a ler textos fundamentais para a pós graduação, além de gravar a conversa dos indígenas: seu trabalho estuda a variação linguística de um vocábulo caingangue. Algo como no português “Vossa Mercê” virou “vosmicê” e depois “você”.
O orientador de Damaris, professor Marcelo Oliveira, explica que tinha de ser ela a fazer esse estudo. “Tinha uma festa, o pessoal estava se arrumando e a Damaris ia lá, conversava com o celular gravando, captava o que ela queria e depois ia transcrever”. Oliveira não acredita que estudos sobre indígenas têm de serem feitos por indíKaninsãnh genas por ser mais fácil, mas sim, por ser mais justo. “A gente não está dentro. Ainda que eu morasse em Apucaraninha não estaria dentro, precisaria ter nascido lá”, pontua. “A gramática pedagógica caingangue não sai sem indígena. Não adianta a gente fazer a pesquisa, entender a língua e escrever. Os indígenas têm que escrever. Estamos aqui para dar o suporte teórico. O resto é com eles”, disserta.
Damaris aprimorou o português ao longo da graduação em letras, mas, durante a pós, Marcelo percebeu que ela “enferrujou”. “Como ela saiu da graduação, ficou um ano parada e depois fez a especialização, parou o contato com o português. Ela vem de vez em quando para o shopping em Londrina e volta embora, então é a semana inteira falando caingangue”, justifica. A língua foi uma barreira que Damaris quebrou. O preconceito, o transporte, as regras acadêmicas e o dinheiro foram outras. “Para mim é muito gratificante este momento, como indígena, depois de passar por muitas dificuldades da graduação e especialização, não tenho palavras para descrever o que estou sentindo”, reconhece. “Dificuldades financeiras, dificuldades de entender o português, explicar as teorias usadas na monografia, ir e voltar todo dia para a aldeia, chegar uma e meia da manhã em casa, trabalhar e depois vir assistir as aulas”.
leciona caingangue e português na aldeia para o Fundamental 2 e o Ensino Médio. Nascida em Apucaraninha, em oito de abril de 1991, Damaris Felisbina é a primeira com graduação da sua família. Tem quatro irmãs, duas hoje cursam artes e design de moda pela UEL. Cumprindo um anseio do pai, Manoel “Norég Mág” Felisbino, que iniciou o curso de letras “numa época em que o preconceito era muito maior, não tinha dinheiro para vir, ele que bancava a vinda dele, então começou a não dar certo”, conta o orientador de Damaris, Marcelo. “Tudo que ela tem feito, ela lembra o pai. ‘Em homenagem ao meu pai, porque meu pai tentou fazer e não conseguiu’”, continua. A mãe, Jandira Felisbina “Gasanh”, 53, também finalizará a graduação em letras em junho. “Estamos sempre juntos, dando força um para o outro”, alegra-se Jandira, que iniciou a formação pela UEL aos 47 anos.
“O indígena não pensa só nele. Ela se formou para ajudar a aldeia e os alunos da escola em que trabalha”, assegura a mãe, que, junto do pai, sempre apoiou Damaris. A especialista afirma que o que mais gosta de fazer é dar aula, e que é gratificante ver seus alunos avançando. “Teve uma aluna minha que passou no vestibular da Federal de Santa Catarina”, lembra.
“Ela conseguiu”, conta Jandira sobre sua filha. Damaris alega que sua graduação foi difícil, porque na época não havia transporte. Teve de se mudar para o distrito de Lerroville e deixar sua filha, de sete meses, na aldeia. Kaninsãnh lembrou a dificuldade de deixá-la para iniciar a graduação. “A gente é acostumado a ficar com a família”, conta. “O que eu mais pensei quando quis desistir foi nos meus professores, que sempre me incentivaram a continuar estudando mesmo com dificuldades. Uma professora de educação física que me deu aula no Ensino Médio falava para eu seguir. Ela disse uma vez que mesmo com os filhos a gente tem que continuar estudando, porque estamos pensando no futuro deles”, relembra.
Na sala 129 do CCH (Centro de Ciências Humanas) da universidade, duas irmãs, pai, mãe, amigos e professores comemoraram o pioneirismo de Damaris. Sua filha, hoje com sete anos, não veio. “Não quis vir, ela preferiu esperar a vó dela em casa. Não veio toda a família por causa de transporte”, conta. Kaninsãnh incentiva seus alunos a continuarem os estudos. “A gente dá força para eles estudarem, mas sei que há preconceito”, comenta. “Eu passei por preconceito, tudo que é diferente passa por preconceito”. Ela conta que “têm situações que nem gosto de lembrar” ao pegar ônibus de Tamarana para Londrina. “É triste o preconceito ao indígena”.
São Paulo - O indígena não pensa só nele. Ela se formou para ajudar a aldeia e os alunos da escola em que trabalha”