Semiformação
Faz tempo que o debate público escorre pelo chão em direção ao ralo. Em vez de ideias e argumentos, sobram ofensas e galhardias
A atual onda de “fake news” na internet é apenas a ponta de um gigantesco iceberg. Seria bom se as notícias falsas e maldosas que povoam as redes sociais fossem, em si, o problema. A questão, infelizmente, é bem mais complexa, uma vez que envolve temas geracionais, mau uso das tecnologias de comunicação, equívocos no processo educacional e, para coroar o caos, uma tendência irrefreável dos indivíduos a aparecer sem nada ter para oferecer. O vazio da alma, para suportar o peso dos dias, empurra o corpo para a encenação dos mais constrangedores papéis.
Faz tempo que o debate público escorre pelo chão em direção ao ralo. Em vez de ideias e argumentos, sobram ofensas e galhardias; no lugar de um entendimento saudável da figura do interlocutor, impera a eleição coletiva de inimigos e alvos desumanizados. O lado mais obscuro e maléfico disso tudo é a produção “consciente” de mentiras: autores, obras, dados oficiais, estatísticas, tudo é utilizado de modo desvirtuado, no intuito de conferir razão a quem burla palavras e análises de outros sujeitos. Os limites para a exposição pública do ridículo que repousa em cada um foram todos revogados.
O filósofo alemão Theodor W. Adorno (1903-1969), um destacado membro da famosa Escola de Frankfurt, cunhou a valiosa expressão “semiformação” para se referir às subjetividades socialmente influenciadas pelo modo de produção hegemônico. O indivíduo semiformado é aquele que converte sua existência num sistema alucinado de ocultação da verdade, apelando para o palavrório fantasioso na intenção de impedir que outros encontrem um sentido efetivo para a vida. Para tanto, o semiformado dissemina arbitrariamente suas convicções e leituras da realidade, difamando os divergentes e culpando seus interlocutores pelos equívocos da história. Na mais ousada das hipóteses, o semiformado confessa ser um “exqualquer-coisa”, arrependido e disposto a retirar da mentira que para sempre o alimentará o restante dos seres vivos.
A semiformação é produto do capitalismo tardio, do estertor de uma realidade que precisa ser superada para permitir um diálogo inteligente entre interlocutores convencidos de que as ideias valem a pena. Aprende-se com o outro desde que se enxergue a si mesmo como fruto da síntese de muitas lutas e culturas. O semiformado, ao contrário, não suporta a ruptura entre o interior e o exterior, entre seus desejos e as necessidades sociais, entre o que se manifesta nele e o que se faz essencial aos outros. Por isso, seu pensamento perde fôlego e se limita ao factual, papagaiando o que surge na imprensa comercial e na história oficial. Naufragam, então, a autorreflexão e a liberdade do espírito que se opõe a paranoia.
O semiformado é uma materialização grosseira do capital hostil à gratuidade da vida, o qual não escolhe classe e até prefere aqueles letrados que, como carneiros, berram o mantra dos exploradores. O semiformado, assim, é a menina-dos-olhos do mundo tal qual ele finge ser, inquestionável e imutável.