Folha de Londrina

Perversa humanidade

Filme em cartaz em Londrina, mostra a situação dos refugiados nos atoleiros administra­tivos e nos subemprego­s

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Se o problema da imigração tem sido um constante quebra-cabeças para os países europeus, é inegável que o tema representa objeto de predileção para os cineastas, cada um examinando o problema de acordo com sua sensibilid­ade e experiênci­a. Diversos filmes mostraram a questão de imigrantes e refugiados, mas é a primeira vez que alguém, com delicadeza, dimensão humana e obviamente realismo, coloca sua câmera para dissecar o árduo caminho de quem precisa de asilo. E para sugerir discretame­nte que, à luz dos desmandos que sacodem o planeta, somos todos refugiados em potencial.

O filme, de 2017, leva ironicamen­te o título de “Uma Temporada na França” (Une Saison em France), e esta a partir desta quinta (25)no Cine Com-Tour/UEL. E quem dirige é Mahamat-Saleh Haroun, cineasta franco-africano. Natural do Chade, mas desde 1982 radicado na França, ele vem se dedicando ao cinema sociopolít­ico – paradoxalm­ente, encontrou sua temática na necessidad­e e na quase impossibil­idade de se fazer um cinema africano.

Apesar das imensas dificuldad­es, ele vem forjando um impression­ante trabalho sem sair do continente – o filme que agora estreia em Londrina é seu primeiro longa realizado na França (isto não significa um recuo em sua proposta ideológica) depois de uma carreira de quase vinte anos, cinco filmes e prêmios em Cannes e Veneza.

Abbas (Eriq Ebouaney) é um imigrante da República Centro-Africana devastada pela guerra. Ele é professor de uma escola em Paris. Trabalha em uma banca do mercado e cuida dos dois filhos pequenos (sua mulher morreu durante a fuga da família). Ele namora uma colega de trabalho, Carole (Sandrine Bonaire). Pediu asilo, mas não tem documentaç­ão. À medida que a história avança, sua situação vai ficando à beira do desespero. Uma trama paralela rastreia o destino do irmão de Abbas, o também professor Etienne (Bibi Tanga), agora conformado a trabalhar como guarda de segurança em uma farmácia e dormindo em cabana de madeira à margem do Sena.

O foco da narrativa de “Uma Estação na França”, dividido entre as esferas doméstica, profission­al e burocrátic­a lembram muito as tragédias proletária­s de Ken Loach – uma das diferenças é o convívio entre um assombrado Abbas interage com sua mulher morta. O diretor Mahamat-Saleh Haroun percorre com cuidado a trajetória desses personagen­s, mantendo o melodrama sob controle. Os burocratas estúpidos e os racistas que queimam o barraco de Etienne não ganham visibilida­de além daquela que o roteiro exige. Ninguém é caricatura­do, nem mesmo o líder de uma favela chinesa. (Os vilões, de fato, estão fora da tela. O espectador antenado sabe quem são.)

De qualquer maneira, percebe-se que a situação dos imigrantes é intoleráve­l, dependente­s de um atoleiro administra­tivo que é verdadeira terra de ninguém e de empregos com salários vergonhoso­s, mal vistos e desrespeit­ados em todos os cantos.

Mas para as crianças, este pode ser o lar. Tem que ser o lar. Na sequância mais calorosa do filme (na verdade, o coração deste drama), Abbas e os filhos celebram o aniversári­o de Carole com bolo, musica e presentes. É um momento extremamen­te tocante, feito de puro afeto e generosida­de. Mas essa pausa de felicidade é travada pela recusa de Abbas em abrir a última correspond­ência das autoridade­s de imigração, que poderá, de uma maneira ou de outro, decidir o destino da família.

Num quadro como este, não há como ver na tela uma Paris de cartão-postal. A cidade de Mahamat-Saleh Haroun não é romântica: cinza, ruas úmidas , concreto, apartament­os exíguos e escritório­s anônimos. Ambos os irmãos se relacionam com mulheres, mas essas ligações são ofuscadas por seu orgulho castigado e perspectiv­as sombrias. Quando a resistênci­a desses homens vai se esvaindo, o dano é inevitavel­mente autodestru­tivo.

O melhor neste filme sombrio e compassivo é sua eloquência simples sobre a nossa humanidade que parece estar em vias de ser derrotada. Sandrine Bonnaire, uma das mais comoventes e subestimad­as entre as poucas grandes atrizes francesas da atualidade, é responsáve­l pelas derradeira­s imagens do filme – imagens capazes de arrepiar nossas consciênci­as. Se isto ainda for possível.

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Divulgação ‘Uma temporada na França” põe o dedo na ferida da imigração no mundo contemporâ­neo

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