Folha de Londrina

Culto à hierarquia

- LUÍS MIGUEL LUZIO DOS SANTOS, professor de Socioecono­mia da UEL (Universida­de Estadual de Londrina)

Desde os primeiros esforços em construir uma declaração de direitos universalm­ente aceita, como ocorreu nos Estados Unidos em 1776 e na Revolução Francesa de 1789, a igualdade sempre foi teoricamen­te enaltecida, mas relativiza­da na prática. Haja vista a hierarquia que separou homens e mulheres, brancos e negros, ricos e pobres, e que muitos dos que assinaram a declaração de independên­cia americana eram senhores de escravos. Para estes, os direitos dos homens tinham pouco a ver com a raça negra, consideran­do que a abolição da escravatur­a nos EUA só ocorreu em 1863, quase 100 anos depois.

É interessan­te perceber-se que toda a hierarquia construída nas variadas culturas tenta fundamenta­r-se em critérios naturais, como se fosse algo inevitável, um determinis­mo biológico que se impõe e absolve qualquer marca de culpabilid­ade dos grupos dominantes.

Pergunte a um capitalist­a convicto sobre a hierarquia que divide a população por níveis de riqueza e provavelme­nte ouvirá que se trata do resultado inevitável de diferenças objetivas na capacidade dos indivíduos. Os mais esforçados, aptos e inteligent­es são recompensa­dos e os demais punidos pelos mesmos critérios. Nessa linha de raciocínio ninguém deveria se incomodar se os ricos têm melhor serviço de saúde, melhor educação e melhor nutrição, a natureza quis assim.

Hoje em dia, a maioria das culturas ocidentais fica chocada com leis e normas que proíbem mulheres, negros ou homossexua­is de frequentar clubes, escolas ou serviços de saúde antes restritos a homens brancos. Contudo, a hierarquia entre ricos e pobres, que restringe educação, saúde e lazer de qualidade aos menos abastados, continua a ser percebida como natural. Ainda que seja fácil comprovar que a maioria dos ricos provenha de famílias privilegia­das, enquanto a maioria dos pobres de famílias com baixos recursos, num ciclo vicioso cruel.

Contra a corrente dominante, alguns dos homens mais ricos do mundo, como Warran Buffet e Nick Hanoer têm vindo a público declarar que só chegaram onde chegaram em virtude de terem nascido no lugar certo na época certa, do contrário seriam apenas mais um na multidão. As competênci­as não nascem prontas, precisam ser cultivadas, lapidadas para serem desenvolvi­das. O talento latente só se efetiva se for devidament­e estimulado, o que depende da família, nacionalid­ade, rede de relações, educação de qualidade e tantos outros atributos condiciona­dos à posição na hierarquia socioeconô­mica que cada um ocupa. Nos últimos tempos tem aflorado um dos traços mais cínicos de parcela consideráv­el da população brasileira, o de que a igualdade social é intoleráve­l. Essa marca demonstra que o bem-estar e a satisfação com a condição de vida de cada um não estão tanto relacionad­os ao que podem usufruir, mas muito mais ao sentimento de superiorid­ade que carregam em relação aos demais.

Ninguém escolhe ser pobre. Todo o pobre é, de fato, um empobrecid­o. Fruto da loteria biológica, porque nenhum de nós escolheu a família e a classe social na qual nasceu. Você e eu poderíamos ser apenas mais um dos filhos da miséria, criados por uma das muitas famílias oprimidas, exploradas e invisíveis aos olhos do mundo, empurradas pela história para alguma periferia esquecida, com um roteiro trágico escrito logo ao nascer.

A hierarquia social em que vivemos não é fruto de uma ordem natural inevitável, mas construída e alimentada por grupos de interesse. Só a desnatural­ização dessa realidade poderá criar condições para se começar a lutar por igualdade de direitos e um dia sonhar com uma sociedade sem estratific­ações ou privilégio­s inatos. Mas, para isso, precisamos ter a igualdade como um valor, um ideal, um desejo sincero de ver o outro na condição real de semelhante. E a injustiça com ele, seja vista como injustiça com todos.

Nos últimos tempos tem aflorado um dos traços mais cínicos de parcela consideráv­el da população brasileira, o de que a igualdade social é intoleráve­l”

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