Culto à hierarquia
Desde os primeiros esforços em construir uma declaração de direitos universalmente aceita, como ocorreu nos Estados Unidos em 1776 e na Revolução Francesa de 1789, a igualdade sempre foi teoricamente enaltecida, mas relativizada na prática. Haja vista a hierarquia que separou homens e mulheres, brancos e negros, ricos e pobres, e que muitos dos que assinaram a declaração de independência americana eram senhores de escravos. Para estes, os direitos dos homens tinham pouco a ver com a raça negra, considerando que a abolição da escravatura nos EUA só ocorreu em 1863, quase 100 anos depois.
É interessante perceber-se que toda a hierarquia construída nas variadas culturas tenta fundamentar-se em critérios naturais, como se fosse algo inevitável, um determinismo biológico que se impõe e absolve qualquer marca de culpabilidade dos grupos dominantes.
Pergunte a um capitalista convicto sobre a hierarquia que divide a população por níveis de riqueza e provavelmente ouvirá que se trata do resultado inevitável de diferenças objetivas na capacidade dos indivíduos. Os mais esforçados, aptos e inteligentes são recompensados e os demais punidos pelos mesmos critérios. Nessa linha de raciocínio ninguém deveria se incomodar se os ricos têm melhor serviço de saúde, melhor educação e melhor nutrição, a natureza quis assim.
Hoje em dia, a maioria das culturas ocidentais fica chocada com leis e normas que proíbem mulheres, negros ou homossexuais de frequentar clubes, escolas ou serviços de saúde antes restritos a homens brancos. Contudo, a hierarquia entre ricos e pobres, que restringe educação, saúde e lazer de qualidade aos menos abastados, continua a ser percebida como natural. Ainda que seja fácil comprovar que a maioria dos ricos provenha de famílias privilegiadas, enquanto a maioria dos pobres de famílias com baixos recursos, num ciclo vicioso cruel.
Contra a corrente dominante, alguns dos homens mais ricos do mundo, como Warran Buffet e Nick Hanoer têm vindo a público declarar que só chegaram onde chegaram em virtude de terem nascido no lugar certo na época certa, do contrário seriam apenas mais um na multidão. As competências não nascem prontas, precisam ser cultivadas, lapidadas para serem desenvolvidas. O talento latente só se efetiva se for devidamente estimulado, o que depende da família, nacionalidade, rede de relações, educação de qualidade e tantos outros atributos condicionados à posição na hierarquia socioeconômica que cada um ocupa. Nos últimos tempos tem aflorado um dos traços mais cínicos de parcela considerável da população brasileira, o de que a igualdade social é intolerável. Essa marca demonstra que o bem-estar e a satisfação com a condição de vida de cada um não estão tanto relacionados ao que podem usufruir, mas muito mais ao sentimento de superioridade que carregam em relação aos demais.
Ninguém escolhe ser pobre. Todo o pobre é, de fato, um empobrecido. Fruto da loteria biológica, porque nenhum de nós escolheu a família e a classe social na qual nasceu. Você e eu poderíamos ser apenas mais um dos filhos da miséria, criados por uma das muitas famílias oprimidas, exploradas e invisíveis aos olhos do mundo, empurradas pela história para alguma periferia esquecida, com um roteiro trágico escrito logo ao nascer.
A hierarquia social em que vivemos não é fruto de uma ordem natural inevitável, mas construída e alimentada por grupos de interesse. Só a desnaturalização dessa realidade poderá criar condições para se começar a lutar por igualdade de direitos e um dia sonhar com uma sociedade sem estratificações ou privilégios inatos. Mas, para isso, precisamos ter a igualdade como um valor, um ideal, um desejo sincero de ver o outro na condição real de semelhante. E a injustiça com ele, seja vista como injustiça com todos.
Nos últimos tempos tem aflorado um dos traços mais cínicos de parcela considerável da população brasileira, o de que a igualdade social é intolerável”