O CINÉFILO FIEL
Cinema de Kore-Eda tem todos os ingredientes do melhor classicismo.
Aos 56 anos (por coincidência, completados ontem), o japonês Hirokazu Kore-eda já realizou 14 longas metragens desde os anos 1990. Conheci o cinema dele em 1995, no Festival de Veneza, quando “Maborosi/A Luz da Ilusão”, drama denso e amargo, ganhou o Leão de Ouro de melhor filme, surpreendentemente – porque competindo com medalhões veteranos. Na primeira fase da programação do Cine ComTour/UEL, abrangendo o período de 2005 a 2015, a exibição de três títulos valeu como cartão de visitas do cineasta. Quem viu foi conquistado de imediato: “Ninguém Pode Saber”, “Boneca Inflável” e “O Que Eu Mais Desejo”, respectivamente de 2004, 2009 e 2011. Pois bem, após premiações diversas ao redor do mundo, há duas semanas Kore-Eda levou o troféu mais ambicioso: a Palma de Ouro por “Assunto de Família”. E a partir desta quinta-feira (10) é tempo de conhecer na sala da Universidade seu filme anterior, “O Terceiro Assassinato”, de 2017.
O filme é um drama misterioso que procura os caminhos para indagar sobre a verdade e as muitas complicações para encontrá-la. Quando se está em meio a um julgamento que vai definir o resto de uma vida, evidente que é absolutamente relevante comprovar a inocência do acusado – ou pelo menos é o que a maioria das pessoas imagina. Mas não Misumi, um homem que enfrenta seu segundo julgamento por assassinato. E que por isso é sentenciado à morte. Mas um advogado arguto, talentoso e paciente se impõe como desafio reduzir a pena do acusado. E logo se dará conta que o caso não será apenas mais um, isto porque terá que enfrentar a palavra do próprio cliente, que é inconsistente e contraditório em seus depoimentos e também diante da própria situação em que se encontra.
O cinema americano estabeleceu algumas regras para este gênero (investigação criminal seguida de julgamento) e a narrativa de Kore-Eda passa por cima de todas elas: altera o ritmo, dosifica a intriga com mais pausa que pressa, provoca ideias, duvidas, posicionamentos morais e reações imprevistas. Não a busca “comercial” do entretenimento. E pede sutileza na adesão ao argumento, a cenas como a do acusado que abre as mãos e deixa voar o pássaro. Por isso não é filme de facilitações, e por isso vem com um discurso repleto de significados. Na relação entre acusado e advogado, o diretor propõe – inclusive formalmente – um embate fascinante em busca da verdade.
O argumento tem de início a formatação de um drama judicial somente (um latrocínio simples, roubo seguido de morte cometido por um reincidente que há 30 anos já havia sido julgado e condenado). Mas na verdade esconde uma fascinante imersão de Kore-eda na alma humana – e aí temos duas bem-vindas influências: Dostoiévski em primeiro lugar, com “Crime e Castigo”; e Akira Kurosawa, com “Rashomon”, o clássico de 1950. Após um início pesado, rígido e compassado, ao apresentar os envolvidos na trama e suas posturas, logo o espectador é enredado e começa a gerar teorias sobre o andamento do caso. Um caso que se converte em ensaio filosófico sobre justiça e identidade do juiz, a culpabilidade do assassino, a função do advogado e, quem sabe, a mão de Deus.
O cinema de Kore-Eda tem sempre todos os ingredientes do melhor classicismo: tradição, sentimento, emoção, dramaturgia, relações (familiares) complexas, reflexão ética. Nem por isso deixa de assumir riscos narrativos e perspectiva contemporânea.
É cinema feito por um mestre que sabe como poucos transformar o particular em universal.
Na relação entre acusado e advogado, o diretor propõe – inclusive formalmente – um embate fascinante em busca da verdade