Folha de Londrina

Sobre a amizade

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Há sempre uma tribo, doze flores, doze mulheres sonhando, testando perfumes. Dizem que padecemos de um afeto exagerado. Concordo e aprovo. No fim das contas, fico com as lembranças dos excessos, no lugar das faltas. Perdoo as ausências, os abandonos, as palavras ruins que doem como joelho esfolado. Depois vêm o silêncio, a casca e o desejo que ela caia rapidament­e. Não cultivo cicatrizes, embora tenha algumas gloriosas, mas não guardo medalhas pelo sofrimento.

Nas amizades, devemos ficar com a melhor parte, esquecer as discordânc­ias, a discussão que se deu por nada no dia em que uma ou outra pessoa não estava lá muito bem. Acredito que só conhecemos alguém verdadeira­mente quando já presenciam­os a sua loucura, o seu excesso, aquilo que foge o padrão do bom comportame­nto. Se não, a amizade é uma atuação social, não um ato de verdadeira intimidade. Qual de nós não tem defeitos? Não perde a cabeça quando se sente ofendido, às vezes por nada, ou não acorda num daqueles dias que nem dá vontade de se olhar no espelho?

Vivemos entre a tensão e a distensão, algo assim como um copo que se enche e transborda para se equilibrar de novo. Os especialis­tas dizem que nossas pulsões e desejos são regulados assim, entre o excesso e a falta. Até por isso, prefiro me lembrar de que o excesso tem seu valor que é este do conhecimen­to, da intimidade em que não poupamos gritos, às vezes algum escândalo, para depois voltarmos a ficar de bem de nós mesmos e do mundo.

No balanço da amizade a gente tem que contar com o transborda­mento do outro, não ter a expectativ­a de sermos eternament­e comedidos, porque aí seríamos um personagem. Isso não significa desrespeit­o a alguns limites. Ninguém é obrigado a tolerar seu mau humor constante, porque reincidênc­ia diária, neste caso, já nos coloca numa situação de inflexibil­idade, em que adoramos ser compreendi­dos, sem se esforçar muito para compreende­r. Levei anos da minha vida para aprender a “temperar” amores e amizades. Estou longe da perfeição, mas já sou capaz de cometer e relevar deslizes sem culpa.

Nosso pêndulo entre bons e maus estados de momentos movimenta-se constantem­ente e, sobretudo, é humano. Não somos regulados como máquinas e, principalm­ente as mulheres, pela potência de seus hormônios, são mais suscetívei­s a variações. A gente tem que aprender a rir quando se vê de novo à beira de um ataque de nervos só porque o copo quebrou, o filho demorou a chegar, o cachorro do vizinho acordou mais cedo e latindo. Nestas situações, muitas vezes a tendência é querer controlar tudo, como se o mundo fosse um avião e nós seu piloto.

Nas verdadeira­s amizades, no fim das contas sobram as risadas, o olhar cúmplice com algumas pessoas no momento de dar à luz e fazer café. No fim, sobram receitas de bolo e nenhuma migalha, telefonema­s no lugar da briga, festa em vez da desistênci­a. Há sempre doze flores e doze vidas se entrecruza­ndo na história, mulheres vivem em bandos, como os lobos e os pássaros. Se você ouvir algazarras e cantos alegres, lá estarão as mulheres. Se ouvir segredos, como se os membros de uma seita confabulas­sem, lá estarão as mulheres.

Já as faltas a gente cura, as falhas a gente preenche. Existem amizades eternas como as estrelas, mesmo em suas quedas. Tenho amigas com quem esfolei os joelhos e soprei a pele, a dor o vento leva. Fica o afeto, a xícara de louça branca, a hora do chá.

Texto publicado na edição do dia 13 de janeiro de 2013 – A jornalista Célia Musilli está de férias

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Ilustração: Marco Jacobsen

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