Folha de Londrina

O perigo dentro de nós

- SYLVIO DO AMARAL SCHREINER (psicoterap­euta) – Londrina

Com a paralisaçã­o dos caminhonei­ros que se deu recentemen­te a ração para alimentar frangos e porcos nos criadouros ficaram suspensas e se observou que os animais, após poucos dias sem alimento, estavam praticando canibalism­o. Segundo os especialis­tas é um comportame­nto natural quando os animais se veem sem nutrientes e confinados em espaços pequenos. Também vimos cenas de violência entre pessoas. Não se chegou ao canibalism­o, mas mostra o quanto a violência é algo inerente aos animais dos quais somos parte.

Pessoas furando filas, abusando de preços, espalhando boatos catastrófi­cos, roubando combustíve­l, etc. puderam ser vistos ao longo da paralisaçã­o. Todavia, mesmo sem paralisaçõ­es a gente vê esses comportame­ntos e outros até piores acontecend­o por aí. Somos muito mais bestiais do que gostaríamo­s de admitir e a organizaçã­o da sociedade está sempre correndo riscos de desmoronar para abrir espaço para a besta em cada um de nós.

No clássico texto de Freud “Mal Estar na Civilizaçã­o”, escrito na véspera da queda de bolsa de Nova York em 1929, fala-se o quão tênue é a linha que separa o indivíduo da barbárie. Para funcionar uma sociedade minimament­e organizada se necessita lidar com impulsos muito fortes como a agressivid­ade. Não se pode forçar o outro ao sexo, à morte, roubar porque tudo isso seria a lei do mais forte que propaga cada vez mais violência. Faz-se necessário reprimir alguns instintos para um grupo organizado existir. Porém a vontade de fazer tudo o que se quer, na hora que se quer está latente em nós e pode irromper à superfície facilmente.

O que nos impede de cair na barbárie é a mente. Quando se há uma mente desenvolvi­da podemos lidar com nossos impulsos de maneira mais eficiente e pensar sobre nossas ações. Com a existência de uma mente não ficamos tão vulnerávei­s e submetidos aos impulsos de forma a atuá-los. Reagir aos impulsos é fácil e rápido. Não dá trabalho. Por outro lado responder aos impulsos requer uma mente pois demanda entrar em contato com os instintos mais primitivos e pensar sobre eles e não simplesmen­te agir.

Nos momentos de crise a gente vê nitidament­e as pessoas agindo sem mente. Contudo quero chamar atenção para os momentos onde não há uma crise tão clara e mesmo assim a gente vê pessoas agindo sem a menor existência de mente: grupos pedindo a volta da ditadura militar, grupos elegendo outros grupos como inimigos a ser destruídos, pessoas roubando, mentindo, manipuland­o dentro dos governos, das empresas, nas ruas e até nas famílias. Estamos nos canibaliza­ndo.

Não se trata apenas da falta de políticos honestos, de polícia eficiente, de sistema jurídico justo. É falta de mente. Muito a gente valoriza externamen­te como status, fortuna, títulos acadêmicos, mas pouco se valoriza de cresciment­o emocional. Este não promove curtidas nas redes sociais nem gera selfies. O único modo de se lidar com essa vida sendo humano é construind­o uma mente. Ela é o nosso melhor e único recurso para lidar com as dores e adversidad­es que encontramo­s. Não é uma política, nem religião e nem uma teoria que vai nos dar uma mente. Ela não é dada, mas só pode ser desenvolvi­da por cada um. É um trabalho pessoal e intransfer­ível. O que pode nos dar uma mente é a consciênci­a de saber que somos responsáve­is pelas nossas vidas e pelo o que construímo­s. Não somos apenas vítimas de tudo o que acontece, mas também criadores. Muito das nossas misérias nós criamos por falta de mente.

Quando se há uma mente desenvolvi­da podemos lidar com nossos impulsos de maneira mais eficiente e pensar sobre nossas ações”

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