Folha de Londrina

FRAGMENTO

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Numa corrida descontrol­ada – ainda não deixara de se incomodar por fazer papel de idiota – percorreu todos os corredores, passou montes de laranjas, rolos de papel higiênico, sopas. Não foi senão quando chegou de volta ao ponto de partida que ele abandonou todo e qualquer decoro, encheu os pulmões contraídos e gritou o nome de Kate. Agora, andava em largas passadas, berrando seu nome enquanto percorria um corredor e dirigia-se mais uma vez para a porta. Rostos voltavam-se para ele. Não havia como confundi-lo com um dos bêbados que cambaleava­m dentro do mercado para comprar sidra. Seu pavor era evidente demais, era forte demais, enchia o lugar impessoal e fluorescen­tes com um calor humano impossível de ignorar. Dentro de instantes, todo o movimento de compras à sua volta cessou. Cestas e carrinhos foram deixados de lado, as pessoas convergiam, pronuncian­do o nome de Kate e, de algum modo, em pouco tempo, era do conhecimen­to geral que ela era uma menina de três anos de idade, que fora vista pela última vez no balcão da caixa, que usava um macacão verde e carregava um burrinho de brinquedo. Os rostos das mães estavam tensos, alertas. Diversas pessoas haviam visto a menina andando de carrinho. Alguém sabia a cor de seu suéter. O anonimato da loja da cidade demonstrou frágil, uma fina crosta sob a qual as pessoas observavam, julgavam, lembravam.

(“A Criança no Tempo”, de Ian McEwan)

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