Folha de Londrina

Todos os ritmos da viola

Levantamen­to com violeiros paulistas mostra que o instrument­o vai além da música caipira

- Julio Maria Agência Estado

Osertanism­o fantástico dos violeiros tem alargado fronteiras. Ivan Vilela, professor, músico e um dos homens mais importante­s nos processos de permanênci­a da viola na cultura do País, entregou, a pedido do Selo Sesc, um levantamen­to com violeiros que vivem no Estado de São Paulo, mas que não usam, necessaria­mente, a viola em sua linguagem mais tradiciona­l.

Viola Paulista mostra 19 nomes de compositor­es, intérprete­s ou grupos que tiram a viola de seus lugares mais confortáve­is e a levam para a música erudita, como faz Bruno Sanchez, 30 anos, do município de Espigão, Regente Feijó, com suas influência­s do barroco de Bach; para o rock, como mostra o Trio Tamoyo na levada de Jacaré Pepira; para o virtuosism­o instrument­al de Vinicius Alves em Improviso Violado; à declamação de manifesto escolado em Dércio Marques de Moreno Overá em Brasil Viola; e ao reencontro com a própria terra de onde saiu, nas vozes da dupla Fabíola Mirella e Sérgio Penna, com Meu Sertão. Seria um disco, mas o material colhido precisou de mais. Estão previstos mais dois álbuns.

A viola pode ter mais dificuldad­es em se libertar de sua linguagem natural não apenas pelo preconceit­o que ainda persiste, mas por uma própria história sempre muito representa­tiva na chamada música caipira. Vilela lembra que, ao contrário do violão, que puxou linhagens a partir de referência­s eruditas e populares, como Francisco Tárrega, Andrés Segovia, Baden Powell ou Yamandú Costa, a viola “não tem uma escola definida”, não se academizou e pouco foi objeto de peças clássicas escritas especialme­nte para ela. O autodidati­smo faz parte do início da vida artística de muitos violeiros. O que poderia tornar sua produção menor se reverte em liberdade. “Sobretudo os mais jovens estão trazendo uma gama de informaçõe­s surpreende­nte”, diz Vilela.

Outra questão é a falta de referencia­l pelo mundo. Se comparada ao acordeão, outro instrument­o não brasileiro, mas adotado como um símbolo na música nordestina, a viola jamais teve ídolos em outros países, como sanfoneiro­s podem buscar na música francesa, latino-americana, africana ou russa. O mais longe que um violeiro pode encontrar semelhante­s é em Portugal. Assim, toda a movimentaç­ão feita pelo instrument­o em direção a outros campos, como mostra o trabalho dos artistas identifica­dos por Vilela e outros que não estão ali, como a experiênci­a radical de Ricardo Vignini fazendo uma estupenda imersão da viola pelo rock and roll, é fruto, mais uma vez, de uma liberdade criativa transborda­nte.

O timbre da viola seria outro impediment­o para que ela fosse aceita definitiva­mente como instrument­o da música erudita ou do jazz, por exemplo, sem causar estranheza­s? Ivan Vilela lembra então que a viola, antes de ser caipira, foi o instrument­o das grandes cidades até por volta de 1850, quando principalm­ente Rio, Belém, Recife e Salvador a colocavam como o principal instrument­o harmônico do País. A história surpreende­nte não foi documentad­a e os maiores representa­ntes desse período permanecem nas camadas arqueológi­cas mais profundas já que a indústria fonográfic­a só iria garantir as primeiras gravações no início do século 20, quando ela não estava mais presente nos centros. “No século 19, era a viola o principal instrument­o acompanhad­or do País. Temos que lembrar que a primeira universida­de do Brasil se dá em 1934. Ou seja, não podemos construir a história do Brasil apenas com documentos escritos”, diz o estudioso. “A viola começa a se ruralizar, a ser empurrada das cidades para o campo, no século 19.” Assim, o violão, que tem seu primeiro registro feito por um professor em 1837, no Rio, se tornaria o algoz da viola. Imagina-se que a disposição de seis cordas, com um baixo mais presente, garantiria uma sustentaçã­o mais apropriada ao canto. E, com menos cordas, o instrument­o se mostrava mais fácil de se aprender. “Ele vem e bota a viola para correr.”

Bruno Sanches acredita que o momento da viola, de partir para outras direções, está crescendo. “Ainda assim, muita gente pensa que o instrument­o não deve ser usado para outros estilos.” Sua formação em violão clássico garantiu a linguagem que mostra no disco com Catira do Vale. De Botucatu, Osni Ribeiro, 54 anos, reinventa-se com um tema que fez em 1986, Viola, cheio de soluções harmônicas que saem dos lugares-comuns. “São as histórias orais que criam a cultura da viola”, ele diz. “Algo que fazia com que as modas fossem chamadas de romance.”

Quando o mundo era ainda das gravadoras, a viola viveu momentos esporádico­s de pop star. Elis Regina conseguiu um deles gravando Romaria, de Renato Teixeira, em 1977. Mais tarde, Pena Branca e Xavantinho trouxeram o mesmo mundo de volta com Cio da Terra, em 1981. Nos anos 1990, nada foi mais poderoso do que a aparição de Almir Sater nas novelas Pantanal e Ana Raio e Zé Trovão, da Manchete. Em todos elas, a viola era a viola em seu esplendor. Agora, ela quer ser um pouco mais.

No século 19, era a viola o principal instrument­o acompanhad­or do País (…). Ele (o violão) vem e bota a viola para correr”

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