Nosso dever de memória
Morto nesta semana, Claude Lanzmann dedicou dez anos da sua vida à realização de documentário que apresenta testemunhos de sobreviventes judeus e algozes dos campos de extermínio
Existiria imagem capaz de expressar o horror do extermínio dos judeus pelo nazismo? A resposta do cineasta e jornalista francês Claude Lanzmann à espinhosa questão está em “Shoah” (1985), filme de nove horas e meia que consumiu mais de dez anos da vida do realizador. Lanzmann morreu na quinta-feira (5), em Paris, aos 92 anos. A causa da morte não foi divulgada. Ele se consagrou como o diretor do documentário “Shoah”, sobre o extermínio dos judeus na Segunda Guerra.
Nesta, que é sua obra mais conhecida e mais radical, o realizador francês absteve-se de remontar qualquer material de arquivo. O filme apresenta testemunhos de sobreviventes judeus, de camponeses que viviam próximos aos campos de extermínio e de algozes. Além de seus rostos e corpos que rememoram o horror no presente, as únicas imagens usadas retratam os locais em que as histórias narradas se passaram - e foram feitas pelo próprio cineasta.
A opção adotada por Lanzmann ia na contramão do filme mais importante que a França havia feito sobre o assunto até então. Em “Noite e Neblina” (1955), Alain Resnais combinara filmagens próprias, em cores, com imagens em preto e branco encontradas em museus, acervos de emissoras de televisão e coleções diversas.
Tratava-se de uma postura consciente, que valoriza o testemunho e a memória em detrimento da imagem. Simone de Beauvoir viu nisso o grande trunfo do filme: “A grande arte de Claude Lanzmann é de fazer com que os lugares falem, é ressuscitá-los por meio das vozes e, para além das palavras, exprimir o indizível pelos rostos”.
Não surpreende, portanto, que o cineasta tenha reagido com violência a produções subsequentes que procuraram retratar a Shoah por meio da ficção ou valendo-se de fotografias e filmes de época. O cineasta e seus colaboradores reunidos em torno da revista Les Temps Modernes se opuseram veementemente, por exemplo, a Steven Spielberg e seu “A Lista de Schindler” (1993).
O filósofo Georges Didi-Huberman também foi alvo da crítica lanzmanniana ao jogar luz sobre quatro fotografias, hoje célebres, feitas clandestinamente em 1944 por membros do Sonderkommando que conseguiram fotografar o processo de extermínio em Auschwitz-Birkenau.
Antes do embate entre DidiHuberman e Lanzmann, o cineasta e crítico francês Jacques Rivette já havia recebido de maneira virulenta “Kapò” (1960), ficção do italiano Gillo Pontecorvo ambientado em um campo de concentração.
Com o título “Sobre a Abjeção”, Rivette condenava o filme de Pontecorvo por sua postura imoral, ao fazer um travelling de aproximação que mostrava o corpo de uma prisioneira morta na cerca eletrificada.
É difícil restituir de maneira resumida as respostas contrastantes à questão que inicia este texto. De fato, nenhuma imagem - como aliás nenhuma palavra - é capaz de exprimir o horror do genocídio perpetrado pelos nazistas contra o povo judeu. Nenhuma imagem diz o momento da Catástrofe.
Quem passou pela câmera de gás não sobreviveu para narrar. Nenhuma fotografia pode expressar o que foi um campo de extermínio. As imagens ainda assim existem, e, existindo, nos ajudam a imaginar essa terrível realidade - ainda que representá-la de maneira fidedigna seja operação fracassada de saída.
Não é possível escolher uma ou outra posição no embate entre imagem e não imagem, entre Lanzmann e DidiHuberman. Temos, sim, que cumprir com nosso dever de memória, memória viva e a partir do presente, como ensinou o realizador de “Shoah”.
E aceitar o paradoxo descrito por Adorno: “Escrever poesia depois de Auschwitz é um ato bárbaro, e isto corrói até o conhecimento da razão pela qual hoje se tornou impossível escrever poesia”.
JUVENTUDE COMUNISTA
Filho de imigrantes russos na França, Claude Lanzmann nasceu em 1925, uniu-se à Juventude Comunista e lutou na resistência francesa contra os nazistas quando era adolescente. Como jornalista, sempre teve forte atuação política, assinando o Manifesto dos 121, contra as ações do governo francês na Algéria. A causa anticolonialista também foi uma das marcas de sua trajetória.
Ele estudou filosofia na Sorbonne depois da Segunda Guerra e, mais tarde, tornariase amante da filósofa Simone de Beauvoir. Ele fez parte do jornal Les Temps Modernes, fundado por ela e pelo filósofo Jean-Paul Sartre.
Mais tarde, teria uma carreira como professor universitário em Berlim. Depois de ler “Reflexões Sobre a Questão Judaica”, ensaio de Sartre, organizou um seminário sobre o antissemitismo para seus alunos. Depois, com o desejo de denunciar a fragilidade do processo de desnazificação no meio universitário alemão, publica dois artigos em um jornal do país -e acaba deixando a carreira acadêmica.
É quando retorna à França, e começa sua carreira como jornalista, que também o tornaria notório.
Em 1959, por exemplo, ele publicou um longo artigo sobre a situação do Dalai Lama no Tibet na revista Elle. Em 1986, depois da morte de Simone de Beauvoir, ele assumiu a direção do jornal Les Temps Modernes.
Na publicação de Sartre e Beauvoir, ele vai pela primeira vez a Israel, de onde envia uma série de artigos. Nos anos 1967, logo depois da Guerra dos Seis Dias, produz uma edição especial sobre o conflito árabeisraelense.
É em 1973 que o intelectual estreia no cinema, com o filme “Por Que Israel”. Um ano depois, ele já começaria a filmar “Shoah”.