Folha de Londrina

CÉLIA MUSILLI

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A velhice me assombra a cada vez que encontro um olhar perdido no tempo.

Se eu fosse tratar poeticamen­te a velhice começaria pelos olhos. O olhar dos velhos sempre me paralisa, como se trouxesse o passado sem a perspectiv­a do futuro. É como se o tempo parasse.

Outro dia vi um velho japonês numa galeria, senti uma dor respeitosa ao vê-lo absorto na porta da lanchonete como se procurasse um endereço invisível. A postura era de extrema fragilidad­e, trazia um papel dobrado, olhava para ele sem encontrar referência, nenhuma conexão.

O olhar daquele velho me doeu, mas a minha dor era um bom sinal, apesar de tudo ainda não cai na indiferenç­a. Até por isso, vejo velhos e jovens nas ruas e seus comportame­ntos. Dói quando vejo uma mulher, nos seus 80 anos, carregando uma sacola de compras, sem um filho, um neto, sem alguém que possa lhe tirar o peso das mãos e da vida. Dói quando vejo a extrema dificuldad­e de um idoso ao atravessar as ruas, sem ter a confiança absoluta de que o semáforo não vai abrir de repente. Dói quando encontro velhos que já não se movem, sentados em cadeiras de rodas no Calçadão, amparados por um cuidador que pacienteme­nte movimenta as rodas como se girasse o passado e o futuro.

A dor, na verdade, enternece. Dá vontade de acolher a fragilidad­e e transformá-la na alegria de saber como é a vida dessas pessoas. Os velhos têm histórias incríveis, passados de dança de salão e de quermesses, de famílias reunidas para mais um aniversári­o, mais um Natal vencendo o tempo implacável que não para e vai engolindo as pequenas e as grandes aventuras.

Gosto também de ver fotografia­s e observar no velho de hoje o jovem que um dia escalou montanhas, dirigiu sem carteira de motorista, ralou o milho para fazer a comida das festas, colheu café como quem colhe a alvorada de sonhos e passarinho­s num quintal que o tempo engole. Velhice para mim, além da dor, é um pomar de jabuticabe­iras, as folhas derrubadas no outono, um espelho antigo, uma cadeira de balanço, uma cristaleir­a que guarda copos que ninguém usa, um garfo torto que venceu as décadas indo à boca daquele dono desdentado que ainda assim abre um sorriso.

Velhice para mim são os netos perfilados na fotografia com o avô, um bilhete esquecido num livro, a caderneta de contas a pagar, o livro de receitas, os óculos guardados no baú empoeirado do dono que já se foi. Velhice para mim é um relógio de parede,um chinelo desgastado, um cão que ainda procura o dono, a casa caiada, o muro despencand­o sem que ninguém mais lhe ponha um arrimo.

Velhice é ainda um abraço com cheiro de lavanda, um batom ressecado, um cartão-postal de Poços de Caldas, a torre das igrejas, o livro de missa, o rosário dependurad­o na cabeceira da cama.

Velhice é uma lembrança terna que me paralisa, que me assombra a cada vez que encontro um olhar perdido que escoa como um rio que ninguém sabe para onde vai, um Lete de memórias consumidas, um barqueiro fazendo a transição entre a vida e a morte. Velhice, sobretudo, é um olhar que me chama a atenção nas portas de uma galeria, sem saber se segue à direita ou à esquerda, sem poder conferir os números num papelzinho dobrado para servir de referência a algum porto seguro da realidade.

Velhice é um marco que me incomoda e me faz cair em abstrações que me mostram que ainda não sou indiferent­e às coisas do mundo, à passagem da vida que se desenrola no meu olhar atento, sabendo que no futuro também cairei num vazio que embaça a vista. Até lá, leio e escrevo poemas para dedicá-los aos velhos. E, evocando a sabedoria, por fim me lembro de Cecília Meireles que traz a síntese da emoção diante da fragilidad­e: “Já não se morre de velhice/ nem de acidente nem de doença/ mas, Senhor, só de indiferenç­a.”

* Texto publicado na edição do dia 2 de setembro de 2017 – A jornalista Célia Musilli está de férias

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Ilustração: Marco Jacobsen

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