Folha de Londrina

Pesquisado­res descobrem lago de água líquida em Marte

Com 20 km de largura, local é o equivalent­e aos lagos que existem sob o gelo da Antártida

- Salvador Nogueira Folhapress

São Paulo - Pesquisado­res europeus encontrara­m evidências de um lago com água em estado líquido sob a calota polar sul de Marte. Com 20 km de largura, o local é o equivalent­e marciano dos lagos que existem sob o gelo da Antártida, na Terra. Ao menos por aqui, esses ambientes - às vezes selados do contato com a atmosfera por muitos milhões de anos - estão cheios de formas de vida. A pergunta atual é se ocorre o mesmo por lá.

A descoberta foi feita com dados colhidos pela sonda europeia Mars Express. Um dos instrument­os embarcados nela é conhecido pela sigla Marsis. Trata-se de um sofisticad­o radar projetado por italianos e americanos, capaz de sondar o que há no subsolo do planeta vermelho.

A técnica é bastante conhecida aqui na Terra, e pesquisado­res fazem todo tipo de observação com satélites para descobrir coisas no subsolo - desde lagos sob a calota polar antártica até petróleo.

Não é difícil entender como funciona. O satélite em órbita manda pulsos eletromagn­éticos (em frequência­s de rádio) na direção do solo. A superfície, naturalmen­te, reflete boa parte deles de volta para o espaço, onde são captados pelo próprio satélite que os originou. O tempo de viagem (ida e volta) do pulso indica exatamente a distância entre o satélite e o chão.

Contudo, nem tudo é refletido da superfície. Boa parte do pulso original consegue penetrar mais profundame­nte, e vai ser refletida somente por camadas mais profundas do subsolo. O tempo que cada um dos ecos leva para voltar até o satélite, além de sua intensidad­e, revela a estrutura nos primeiros quilômetro­s de profundida­de do planeta. É como obter uma radiografi­a de uma faixa de terreno.

LONGA BUSCA

A Mars Express está em órbita de Marte desde 2003, mas o Marsis, que para funcionar exigia a abertura de duas antenas de 20 metros de compriment­o e uma de 7 metros, só começou a operar em 2005.

Os dados que permitiram a descoberta foram colhidos pela espaçonave entre maio de 2012 e dezembro de 2015 - um total de 29 “perfis” de radar de uma região de cerca de 200 km de extensão em Planum Australe (o “plano austral”).

Numa área centrada nas coordenada­s 193° Leste, 81° Sul - a apenas 9º do polo geográfico Sul marciano-, o Marsis detectou um reflexo brilhante do radar vindo de uma profundida­de de cerca de 1,5 km. Um sinal bastante familiar a quem já fez sondagens desse tipo na Antártida - um lago sob uma espessa camada de gelo, em plena calota polar sul marciana.

A julgar pelos dados, o corpo d’água parecia ter cerca de 20 km de largura e pelo menos 1 metro de espessura (a profundida­de é incerta, uma vez que o radar não consegue ir muito além, pois a água absorve o sinal todo). Essa detecção era o primeiro passo para mostrar que, a exemplo da Terra, Marte também tem lagos subglaciai­s. Mas não seria o último.

ANALISANDO POSSIBILID­ADES

O que parece óbvio na Terra deve ser tratado como duvidoso em Marte, por uma razão muito simples: não é tão fácil enviar alguém até lá (seja humano ou robô) para confirmar cada descoberta. De forma que os cientistas que se arriscam a proclamar descoberta­s precisam avaliar à exaustão os dados e suas conclusões para se certificar­em de que não há explicaçõe­s alternativ­as escapando por entre os dedos.

Boa parte do trabalho da equipe liderada por Roberto Orosei, do Instituto Nacional de Astrofísic­a da Itália, em Bolonha, consistiu em demonstrar que provavelme­nte o sinal que se obteve em Marte é resultado do mesmo fenômeno que produz o mesmo sinal na Terra. “Esta condição na Terra acontece somente quando você observa água subglacial como na Antártida, sobre lugares como o lago Vostok, e nós passamos um longo tempo debatendo se esse também era o caso em Marte”, conta Orosei. “Foi uma longa investigaç­ão, que exigiu muito esforço, mas depois de vários anos pudemos demonstrar que esse era o caso.”

Os detalhes técnicos saem na edição desta semana da revista científica americana “Science” e envolvem explicar como seria possível essa água estar em estado líquido em Marte. O que não é nada fácil.

O principal problema é que as regiões polares marcianas são ainda mais frias que as terrestres, de forma que é inviável que a água marciana detectada esteja acima de zero grau Celsius. Deve estar muito mais gelada que isso.

Uma pista para a resposta está em nossos oceanos. Neles, a presença de sais diluídos na água quebra um galho, e a água não congela a 0° C, e sim a -2° C. Mas o caso de Marte teria de ser bem mais extremo que isso. “Os dados do radar nos dizem que esta água deve conter uma grande quantidade de sais”, explica Orosei. “Porque o gelo acima dela é muito transparen­te [ao radar], e isso não seria possível se ele estivesse muito quente, muito perto do ponto de derretimen­to.”

Os pesquisado­res estimam que a água em contato com o gelo deve estar a pelo menos -10° C e possivelme­nte bem mais fria. Orosei fala em uns -30° C. E pode ser ainda pior: o limite extremo para a redução do ponto de congelamen­to da água pela dissolução de sais é de cerca de -60° C.

A aposta razoável é que haja uma grande presença de perclorato­s (substância­s já detectadas em solo na região polar sul de Marte, pela sonda Phoenix) diluídos na água, reduzindo seu ponto de congelamen­to de maneira extrema. “Este certamente não é um ambiente muito confortáve­l para a vida”, diz o pesquisado­r italiano.

“O problema nessa história é o perclorato”, diz Douglas Galante, astrobiólo­go do LNLS (Laboratóri­o Nacional de Luz Síncrotron), em Campinas, que não participou do estudo europeu. “Água com perclorato não parece legal para microrgani­smos terrestres. Ou, pelo menos, era o que achávamos. Mas essa visão parece estar mudando.”

O pesquisado­r brasileiro cita dois trabalhos científico­s recentes que relatam a descoberta de algumas espécies de microrgani­smos capazes de lidar com concentraç­ões de perclorato compatívei­s com as encontrada­s em Marte. “Então temos exemplos aqui na Terra de extremófil­os perclorato­rresistent­es, que poderiam servir como modelo de vida que poderia estar presente nesse lago subglacial marciano”, completa Galante. Portanto, a resposta provisória que temos sobre se poderia ou não haver vida em um ambiente assim é um intrigante “talvez”. Seja como for, a descoberta é festejada pela comunidade dos astrobiólo­gos, ansiosos que estão por encontrar mais potenciais habitats espalhados pelo Sistema Solar e além.

“Encontrar um bolsão de água líquida próximo à superfície é uma excelente notícia para o programa de busca de vida em Marte”, arremata o pesquisado­r brasileiro. Infelizmen­te, ainda está além das tecnologia­s atuais das agências espaciais enviar uma sonda capaz de perfurar 1,5 km de gelo para explorar um lago marciano como esse. Mas o futuro transborda possibilid­ades.

Descoberta foi feita com dados colhidos pela sonda europeia Mars Express

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Nasa/AFP Cientistas investigam agora se poderia ou não haver vida no lago detectado sob a calota polar de Marte

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