Folha de Londrina

O CINÉFILO FIEL

-

“Eu, Daniel Blake” traz reflexão sobre esses tempos de cortes orçamentár­ios e política de ajustes

Aos 82 anos, o inglês Ken Loach – mais de cinco décadas de trajetória e filmes que são clássicos verdadeiro­s, como “Lady Bird Lady Bird” , “Ventos da Liberdade”, “Terra e Liberdade”, “Uma Canção para Carla”, “Meu Nome é Joe” – é um dos cineastas mais coerentes e mais bem qualificad­os em sua cruzada pelas reivindica­ções da classe trabalhado­ra, exatamente aqueles operários da classe média-baixa vitimados pela constante e progressiv­a degradação de suas condições profission­ais. Vale dizer, de sua dignidade e de sua autoestima.

Depois de uma estreia obscura e desestimul­ante ano passado no circuito local, “Eu, Daniel Blake” está de volta a partir desta quinta-feira (26) à programaçã­o da cidade, no Cine ComTour. Loach, dez anos depois de sua primeira Palma de Ouro em Cannes por “Ventos da Liberdade”, voltou a ganhar em 2016 o prêmio máximo do festival francês com o drama social minimalist­a “I, Daniel Blake”, a partir de outro roteiro de seu habitual colaborado­r Paul Laverty. O filme descreve a luta de um veterano, viúvo e solitário trabalhado­r de 59 anos (um carpinteir­o) com sérios problemas cardíacos, e também a vulnerável situação de uma jovem mãe solteira com dois filhos pequenos.

O filme se coloca como reflexão sobre esses tempos de cortes orçamentár­ios e política de ajustes destinados a deixar pessoas como Daniel “fora do sistema”. Este enfoque transforma “Eu, Daniel Blake” em obra de fortes convicções políticas (as habituais de Loach). O diretor ajusta novamente seu foco questionad­or na questão da falta de trabalho e oportunida­des, na crueldade do nonsense kafkiano da burocracia estatal (muitas vezes associada com a insensibil­idade do setor privado) e nas misérias do poder. Isto torna a trama um tanto previsível, já que é claro que, neste universo, este tipo de gente nobre por seu caráter e humanidade tem tudo a perder, e que sua única vitória possível é moral. E também ocorre que, por momentos, o filme, por conta de mecanismos sentimenta­is, resulte um tanto manipulado­r e, em outros, até mesmo um pouco demagógico em seu discurso de glorificaç­ão desses personagen­s sempre bem intenciona­dos (Daniel e Katie, a mãe solteira). Mas “Eu, Daniel Blake” funciona bem sobre caminhos previsívei­s.

O fato é que reencontra­r a descarnada humanidade de Ken Loach é motivo de celebração, bem como possibilid­ade de reflexão social renovada – não para todos os públicos, evidenteme­nte. Dono de construção formal simples e direta, que o tornou visualment­e “legível” para todos, Loach continua dono de uma clareza expositiva que resulta em compreensã­o cinematogr­áfica depurada. O minimalism­o deste seu mais recente filme (há mais um em pré-produção, “Sorry We Missed You”) dá bem conta desta sua maneira artesanal de fazer cinema, enquanto articula suas críticas sociais particular­mente desesperan­çadas.

Menção obrigatóri­a para o trabalho impecável de Dave Johns em sua estreia no cinema – é um dos mais importante­s nomes da ‘stand up comedy’ inglesa. O ator resulta numa espécie de alter ego de Loach, porta-voz de discurso com comovente carga humanista e incansável denuncia das misérias e contradiçõ­es do sistema, fora de moda para alguns, mas necessário. Sempre necessário.

Eu, Daniel Blake’, filme vencedor do Festival de Cannes em 2016, está em cartaz em Londrina

 ?? Reprodução ?? ‘Eu, Daniel Blake’: reflexão sobre esses tempos de cortes orçamentár­ios e política de ajustes destinados a deixar pessoas “fora do sistema”
Reprodução ‘Eu, Daniel Blake’: reflexão sobre esses tempos de cortes orçamentár­ios e política de ajustes destinados a deixar pessoas “fora do sistema”

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil