Folha de Londrina

Shakespear­e vai ao bar

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— O que é que você está lendo, Paulo?

— Hamlet, de Shakespear­e.

— Ah, Paulo, faça-me o favor! Precisa por acaso me dizer que Hamlet é de Shakespear­e? Acha que eu não sei?!

Esse diálogo que travei com minha querida amiga Silvia há 20 anos tornou-se parte de nosso folclore familiar. Estávamos fazendo uma visita à casa do irmão dela, Marcelo, que à época morava em Maringá. Eu estava obcecado pela tragédia do príncipe dinamarquê­s.

Minha amiga Silvia é brava. À noite, pouco depois daquele diálogo, fomos a uma festa. Eu tinha deixado um emprego numa agência de publicidad­e para escrever um livro. Queria passar uns dias com Marcelo e Silvia, que considero meus irmãos.

Antes de sair de casa, reli pela centésima vez o monólogo que todo mundo conhece:

“Ser ou não ser — eis a questão.

Será mais nobre sofrer na alma Pedradas e flechadas do destino feroz

Ou pegar em armas contra o mar de angústias — E, combatendo-o, dar-lhe fim?”

Quando chegamos ao bar, percebi que se tratava de uma noite de inauguraçã­o. Marcelo foi até a porta do estabeleci­mento tomar informaçõe­s e de lá mesmo fez o gesto simulando a camiseta do Vasco da Gama — para indicar que era tudo “na faixa”.

Eu e Marcelo começamos a circular pelo bar e de repente estávamos conversand­o com duas moças muito gentis e sorridente­s. Silvia teve de ir embora da festa porque acordava cedo no outro dia — tinha um compromiss­o profission­al lá mesmo em Maringá. Despediu-se de nós e pegou um táxi.

De repente, sem a menor explicação, eu comecei a falar com as garotas como se fosse o príncipe da Dinamarca:

“Morrer; dormir; só isso.

E com o sono — dizem — extinguir Dores do coração e as mil mazelas naturais A que a carne é sujeita; eis uma consumação Ardentemen­te desejável.”

As moças simplesmen­te não sabiam o que fazer. Olharam uma para a outra como quem pergunta: “Quem é esse maluco?” Marcelo ria, ria. As moças fingiram ir à toalete e sumiram para sempre. Marcelo, com seu nariz de Cyrano, ria, ria, ria, não parava de rir.

De repente, abre-se uma portinhola secreta na parede e aparece a Silvia, chorando.

— Alguém fez mal a você, Silvia? — perguntei, subitament­e sóbrio.

—Não. Eu briguei com o taxista por causa da tarifa e ele me largou no meio da rua. Voltei andando.

— Lamento. Em Londrina os taxistas são legais. Conheço todos...

Ficamos mais algum tempo no bar. Silvia só bebeu água. Marcelo e eu encontramo­s sósias de Shakespear­e, Rafael Greca e Wanderley Luxemburgo. No momento de ir embora, voltei-me para os meus amigos e declarei: —“Dormir! Talvez sonhar.”

Hoje Marcelo é um dos mais competente­s e respeitado­s repórteres do país. Silvia é executiva de uma multinacio­nal. E eu sou apenas o cronista que sobrou para contar essa historinha nada shakespear­iana.

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