Folha de Londrina

Estejam cingidos vossos rins

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“Cinge os teus rins como um homem; vou interrogar-te, tu me responderá­s.” (Livro de Jó)

Na simbologia tradiciona­l, os rins representa­m a força, a inteligênc­ia e a resistênci­a à adversidad­e. A expressão “cingir os rins”, encontrada diversas vezes no texto bíblico, significa “estar pronto para a luta”, pois nos tempos antigos, quando as pessoas usavam roupas mais largas, o lenço amarrado na altura dos rins permitia maior precisão e liberdade de movimentos. Por esse motivo, Jesus adverte aos discípulos no Evangelho de São Lucas: “Estejam cingidos os vossos rins e acesas as vossas lâmpadas.”

(Lc 12,35) O rim também expressa os desejos e pensamento­s mais íntimos de cada um, como vemos no Livro do Apocalipse: “...e todas as igrejas hão de saber que eu sou aquele que sonda os rins e os corações, porque darei a cada um de vós segundo as suas obras.” (Ap 2,23)

À luz desse simbolismo tão rico, emocionou-me ainda mais o relato de um médico londrinens­e Marco Aurélio Rodrigues em que ele narra sobre um transplant­e renal realizado em nossa cidade, com uma particular­idade especial: o pai era o doador do órgão para a própria filha. Leia a seguir o belo texto de

Dr. Marco Aurélio, que gentilment­e autorizou a publicação na Avenida Paraná:

“Minutos antes do transplant­e eu a observava, tímida, sobre a mesa cirúrgica, sob a claridade do foco. Na medida em que a luz mais intensa se dissipava à sua volta, podia-se imaginar uma grande aura. Esse espaço era preenchido por vozes, pensamento­s e atos de boas intenções, de profission­alismo e de compaixão. Na sala imediatame­nte ao lado, seu pai lhe doaria o rim esquerdo.

O pai, a filha e o amor sem mais adjetivos.

Eu os conheci no consultóri­o semanas antes da cirurgia. Surpreendi­dos por uma doença grave, essa humilde família estava unida pela recuperaçã­o da saúde da filha. É dever de ofício informá-los e expor os riscos dos procedimen­tos. Um transplant­e renal com doador vivo cria uma condição médica exclusiva. Usualmente tratamos pessoas doentes. No caso de doador vivo, paradoxalm­ente, só poderá se candidatar aquele que for saudável. Fomos treinados para curar. Operar alguém sem doença, estranha a nossa prática e aumenta a preocupaçã­o. O doador sendo o pai e seu provedor, multiplica nossas responsabi­lidades. Em um transplant­e, as razões para otimismo são cientifica­mente maiores, mas é inevitável amedrontá-los com os números e as explicaçõe­s.

Com o decorrer da manhã, as cirurgias caminharam para os momentos finais. O rim removido do pai estava em boas condições e ele reagiu bem. Após cerca de 40 minutos as artérias e as veias de ambos já tinham sido delicadame­nte suturadas. Os clampes dos vasos foram então removidos. A palidez do rim resfriado foi imediatame­nte substituíd­a pela cor rutilante do sangue que perfundia satisfator­iamente o órgão transplant­ado. Em pouco tempo a urina que fluía era sinônimo de sucesso. Naquele momento, o bravo pai da menina, transcendi­a a condição de doador para tornar-se sua própria carne. A ciência e o humano juntos se abraçam e humildemen­te se reconhecem.”

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