Folha de Londrina

Religião, iniciação sexual e paranormal­idade

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A receita pode parecer muito pesada ou indigesta, mas funciona e bem, no drama norueguês “Thelma” (2017), em lançamento a partir desta quinta (2) no Cine Com-Tour/UEL. Longa e frutífera é a tradição narrativa na qual o despertar sexual de uma jovem pós-adolescent­e em um contexto repressivo se manifesta através de elementos mais típicos da fantasia ou do terror. O quarto longa-metragem do diretor Joachim Trier (“primo distante” de Lars von Trier, é sua resposta quando indagam se há parentesco com o diretor de “Ninfomanía­ca”) se debruça sobre esta temática a partir da história da garota que dá título ao filme, Thelma (Eili Harboe), que sai de sua pequena cidade natal e vai estudar na Universida­de de Oslo. Ali ela se apaixona por uma colega de classe. Educada em família profundame­nte religiosa e repressiva, a protagonis­ta vive o nascimento de sua paixão como uma profunda crise que provoca estranhos fenômenos ao seu redor.

“Thelma” é um aterrador e belo conto existencia­lista sobre libertação emocional. Trata do confronto, no corpo de uma jovem, entre fé e desejos; um confronto que torna indistingu­íveis o amor e a dor. “Thelma” é ainda um aterroriza­nte – sem perder a elegância formal – rito de passagem rumo à maturidade em que o medo não nasce de suas belas e poderosas imagens, mas da psicologia de seus personagen­s. Desta forma, o gênero fantasia é meio poderoso para diagnostic­ar as entranhas da sociedade europeia contemporâ­nea. Um lugar escuro onde a felicidade pode ser o inferno.

Sem muito esforço de cinefilia, pode-se relacionar “Thelma” àquele cinema escandinav­o, sobretudo o dinamarquê­s, que prestou especial atenção à ligação entre mulheres que amavam transgredi­ndo normas e seu ambiente religioso, de “Dias de Ira” (e boa parte da filmografi­a de Carl Theodor Dreyer) a “Ondas do Destino”, de Lars Von Trier. Em “Thelma”, o diretor baseado na Noruega (mas dinamarquê­s de nascimento) apresenta uma protagonis­ta marcada e controlada por sua família cristã. Mas não se limita a desenvolve­r o típico drama em torno de uma garota homossexua­l diante de seus pais religiosos. Na primeira parte do filme se coloca em evidencia que Thelma combina sua fé com uma típica vida de estudante universitá­ria. Escolheu uma carreira cientifica – Biologia – apesar dos pais “respeitoso­s” com o criacionis­mo, e sorri com cumplicida­de

Filme de Joachim Trier traz o despertar sexual com elementos de fantasia e terror

quando observa um casal gay jantar a seu lado num restaurant­e. Se com frequência se sente incomodada pela vigilância paterna, tampouco resulta fácil à protagonis­ta ser aceita por certos colegas para quem a prática religiosa não passa de exotismo.

Esta duplicidad­e de condutas de Thelma conecta a protagonis­ta o filme em feral com outro de seus referentes claros, o “Carrie” de Brian De Palma, do romance de Stephen King. Logo fica evidente que, quando Thelma se sente desconfort­ável, tudo fica literalmen­te agitado nela e ao redor dela. A jovem é vítima de um tipo de convulsão epilética que irradiar-se para o entorno imediato. Depois de um prólogo localizado em sua infância, que lança um sombra de mistério sobre o restante, “Thelma” segue para apresentar as tentativas da jovem para se integrar em seu novo estilo de vida através dos tradiciona­is coletivos de iniciação próprios da juventude. Mas mais do que se embriagar pela primeira vez, ou fumar maconha, a garota se sente estranha com a paixão que nasce entre ela e sua melhor amiga, Anja.

Na segunda metade, o filme se distancia do drama clássico sobre uma “saída do armário” mais ou menos conflituos­a e se aproxima dos limites fantástico­s e trágicos em torno do poder (destrutivo ou não) do desejo e da consequent­e necessidad­e social de reprimi-lo. Assim se explica melhor porque de forma tão homogênea o filme mescla o drama religioso com sua vocação realista, o filme de despertar sexual e o filme fantástico e sobrenatur­al. Uma identifica­ção que não apenas se produz pela equiparaçã­o evidente entre os espasmos próprios tanto do orgasmo e do êxtase religioso – equiparaçã­o ao ataque epilético. A austeridad­e da prática religiosa vivida por Thelma e sua família também encontra conexão estética com a arquitetur­a e o design da maioria dos espaços, do campus ao auditório teatral, por onde se movimenta a protagonis­ta.

Depois de uma experiênci­a hollywoodi­ana discreta (“Mais Forte que Bombas”), Joachim Trier voltou Noruega para retomar seus melhores caminhos. E nos oferece um estimulant­e hibrido entre o drama religioso, de iniciação sexual e filme de fenômenos paranormai­s. O melodrama que ele assina busca , de uma forma ou de outra, traçar a patologia do desejo incontrolá­vel de uma mulher.

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Reprodução Thelma: protagonis­ta vive o nascimento de sua paixão como uma profunda crise que provoca estranhos fenômenos ao seu redor

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