Diário de um escritor
Cultivo o hábito de ler diários e memórias de escritores. É um privilégio conhecer ao menos um pouco do universo interior daqueles que criam universos. Recentemente, reli o “Diário Completo”, de Lúcio Cardoso (1912-1968), autor do magistral “Crônica da Casa Assassinada”. Compartilho com vocês sete algumas reflexões do grande escritor mineiro, injustamente esquecido em nossos meios acadêmicos e editoriais; notem a espantosa atualidade dessas notas escritas há quase 70 anos:
“Se Deus não existisse, não chegaríamos apenas à conclusão de que tudo seria permitido. A vida seria simplesmente IMPOSSÍVEL, o peso do nada no esmagaria com a sua existência de ferro. (...) A existência de Deus, mesmo mantida no subconsciente ou apenas pressentida, é o que garante a chama da vida no coração de quase todos os homens.” (26.ago.1949)
“Há uma espécie de morte pior que do que a morte comum — é a da traição, do esquecimento e do abandono, e que dá à lembrança um tão pungente gosto de tempo perdido e de inutilidade das coisas. Com a outra, a morte simples, sempre existe uma possibilidade de saudade, que é um modo de reviver o bem que involuntariamente foi arrancado às nossas mãos.” (15.set.1949)
“A verdade é tudo que ainda não adivinhamos.” (17.set.1949)
“Às vezes não é a vida que me interessa — mas o que me faz estrangeiro dentro dela.” (sem data, 1949)
“Escrevo — e minha mão segue quase automaticamente as linhas do papel. Escrevo — e meu coração pulsa. Por que escrevo? Infindável é o número de vezes que já fiz a mesma pergunta e sempre encontrei a mesma resposta. Escrevo apenas porque em mim alguma coisa não quer morrer e grita pela sobrevivência.” (7.mai.1950)
“O problema essencial não é ensinar o brasileiro a ser, mas a querer ser.” (22.mai.1950)
“Quanto mais escrevo (...), mais encontro razões para minhas aversões políticas.” (22.mai.1950)
“A morte não é um fato isolado, um mal que nos sucede, tudo morre em todos os instantes, tomba, seca, rui e desaparece sem que nada possa reter esse imenso movimento de extermínio, levado a termo pela mão invisível da sombra.” (1.jun.1950)
“Sim, não há dúvida, estão com a razão todos aqueles que afirmam que estamos perdendo o Cristo de vista. É que forças estranhas ao ideal cristão estão nos acenando com a imagem de um Cristo diferente. (...) Um Cristo sem pena, sem luto e sem grandeza, uma espécie de comissário acumpliciado com todas as desgraçadas reivindicações sociais dos homens murchos do nosso tempo.” (10.mar.1951)
“Não sei o que mais possa dizer sobre a posição do artista em face dos tempos que correm — os desgraçados tempos que vivemos tão entranhadamente marcados pela fúria das ideologias e dos interesses políticos em choque. Não é em nenhuma dessas ideologias que faço meu ato de fé, pois as ideias políticas passam, os processos se renovam, a fatalidade constrói e destrói o destinado dos povos e tudo se rende ao eterno esquecimento.” (sem data, 1951)
“A verdade, sim, é o que interessa — mas só para quem a descobre.” (27.fev.1959)