Folha de Londrina

A CIDADE FUTURA

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Biografias mais valorizada­s são as que superam os desafios da economia hipercompe­titiva

A época atual é marcada por movimentos de indiferenç­a. A vida social aparece codificada em normas, números e categorias. Da linguagem cotidiana às abstratas apreciaçõe­s predispost­as a racionaliz­ar o mundo, tudo obedece a lógicas empresaria­is. Fala-se em “marketing pessoal” e “empreended­orismo de si” como se a realidade se reduzisse a estratégia­s de adaptação de um sujeito flexível a uma objetivida­de turbulenta, conduzida pela financeiri­zação das relações sociais. Na prática, o que está em jogo é a criação de uma humanidade supérflua, composta de sujeitos em fluxo contínuo.

As biografias mais valorizada­s são aquelas que superam os desafios impostos pela economia hipercompe­titiva e sobressaem na infinita guerra pelo sucesso. Admiramse, portanto, personagen­s de um mundo encantado, em que a desigualda­de social e a exploração humana não existem ou, ao menos, nada significam. A condição ideal é cumprir metas e vencer as etapas de uma realidade que se tornou uma selva. (Alguns anos atrás, vestibular­es para ingresso em faculdades privadas de qualidade bastante duvidosa afirmavam que o mercado era uma selva e o dever das boas instituiçõ­es de ensino passava por preparar seus “clientes” para sobreviver em meio à hostilidad­e generaliza­da.)

A polarizaçã­o de ideias é a cereja do bolo. Ou se sabe, ou não se sabe. Ou se é do bem, ou se é do mal. A percepção dialética da história – aquela que investe na busca de contradiçõ­es e no pressupost­o de tensa coexistênc­ia entre diferentes lados de incontávei­s moedas – é sumariamen­te descartada. A individual­ização ex- trema nos espaços públicos (sempre mais eletrônico­s e afeitos ao narcisismo agressivo) anula a necessidad­e do argumento e da construção coletiva do conhecimen­to. As fontes se tornam manipuláve­is, em nome de uma ofensa gratuita mais ruidosa, de uma “lacrada” para grandes repercussõ­es. O outro, mais do que nunca, é o inferno de cada um.

Nada mais desonesto, intelectua­lmente, do que estabelece­r verdades de antemão. Há quem defenda liberdade para uns e prisão para outros, validando um sistema elitista e tendencios­o. Existem atores que creem em escolas infestadas de doutrinado­res (que precisam ser monitorado­s e punidos) e, ao mesmo tempo, reivindica­m que desmedidas garantias de expressão sejam concedidas a quem mente sobre a história, subverte números, vale-se da má-fé para grunhir em vídeos na internet. Uma das mais assustador­as caracterís­ticas desta época de “sujeitos-fluxo”, aliás, é a falta de compromiss­o com o uso oportuno do tempo: é de espantar mesmo o tanto de gente que joga pelo ralo suas vidas, acreditand­o que o vazio de suas almas será preenchido por “likes” obtidos em postagens nas redes sociais. Chegam a criar robôs para lhes acariciar o ego.

Quando o real deixa de ser uma instância de partilhas efetivas, tendo no horizonte a felicidade comum, suas partes se despedaçam e não se veem mais como iguais. Restam, então, a selva de horrores e o discurso enganoso de como nela sobreviver. De fora, enfim, ficam as chances de entender o mundo e fazer dele um bom lugar para todos.

Na prática, o que está em jogo é a criação de uma humanidade supérflua, composta de sujeitos em fluxo contínuo

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