Moro onde não mora ninguém
Em 1975, na época em que meus avós moravam na Barra Funda, em São Paulo, ganhei de presente um Mini Cantor. As crianças de hoje dariam risada diante do primitivismo do aparelho: tratava-se de um microfone de plástico ligado por um fiozinho a uma caixa acústica pequena, com tampo alaranjado. Junto com o aparelho, veio um caderninho com as letras de algumas músicas. Entre elas, eu me lembro, estava “Moro onde não mora ninguém”, o samba de Agepê que fez grande sucesso naquele ano.
A letra tinha um leve toque de absurdo; a primeira parte poderia ter sido escrita por Ionesco: Moro onde não mora ninguém
Onde não vive ninguém
Onde não passa ninguém
Mas lá onde moro
É que eu me sinto bem...
Aquele aparelhinho representou o início da minha carreira musical - para o alívio dos ouvidos alheios, não muito bem-sucedida. Uma das minhas canções de trabalho era o samba de Agepê. De vez em quando, acordo com essa música na cabeça.
Foi o que aconteceu no começo da semana.
Caminhando pela Avenida Paraná, senti a falta do cantor que quase sempre canta Raul Seixas; eu estava disposto a depositar uma nota de cinco reais em seu chapéu. Ficou para outra vez. Alguns passos adiante, na esquina com a Avenida São Paulo, olho para cima e vejo o Hotel Sahão, fechado há muitos anos. Quando vim pela primeira vez a Londrina, em 1987, o Hotel Sahão foi o primeiro lugar que conheci na cidade. Algumas vezes estive no bar que funcionava em sua cobertura, inclusive em 1991, na noite em que meu exprofessor, o saudoso jornalista Marinósio Neto, lançou o livro “História da Imprensa de Londrina”. O fundador da Folha, João Milanez, morou por alguns anos no Sahão.
No momento em que eu passava pela Praça da Bandeira, a Catedral estava fechada. No início da manhã, fora assaltada. Felizmente, a Polícia Militar agiu com eficiência e prendeu os dois bandidos.
Avanço mais um quarteirão, passo pelo Edifício América, confiro as horas no Relojão e percebo que há um ajuntamento de pessoas na frente do Cine Teatro Ouro Verde. Aproximo-me e percebo que há duas viaturas: uma da Guarda Municipal, outra da Acesf. Pergunto a uma moça que observa a cena:
- O que aconteceu?
- Morreu um morador de rua.
No momento em que travamos esse pequeno diálogo, percebo que os guardas municipais estão colocando o corpo de um homem dentro da viatura da Acesf.
Ao lado, uma mulher com o rosto devastado pela dor, também moradora de rua, está aos prantos:
- Agora você foi embora... E eu fico aqui sozinha! Os pertences do homem que morreu ficam espalhados sobre o chão da Praça Willie Davids, a poucos metros da estátua do nosso ex-prefeito.
O inspetor da guarda municipal diz que o homem morreu de causas naturais. Ele morava na rua, agora mora em outro lugar.
Vou embora; a música desapareceu de meus pensamentos. Rezo por esse homem - e por aquela que agora está só.
Um rápido encontro com a morte no Calçadão de Londrina, ao som de uma velha canção do passado