Folha de Londrina

CÉLIA MUSILLI

Pelo bem do sossego, tenho me dedicado muito mais à arte e à cultura do que à política

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O cronista, por sua assiduidad­e em dar opiniões, quase sempre vira alvo de rancores ou de amores.

É preciso gostar muito de literatura e jornalismo para bater o recorde de escritores consagrado­s como Machado de Assis, Rubem Braga e Fernando Sabino. Carlos Heitor Cony conseguiu essa proeza com suas crônicas ao longo da vida. O escritor, que faleceu em janeiro de 2018, aos 91 anos, soma-se à galeria das grandes perdas para o jornalismo em 2018, quando também nos despedimos de Alberto Dines.

A proeza de Cony, que bateu recordes em número de crônicas – foram milhares - é enfocada por Ruy Castro, que conviveu com ele em algumas redações, no livro “Quase Antologia”, que acaba de ser lançado pela editora Três Estrelas. No livro, ficamos sabendo que Cony escrevia até três crônicas por semana no Correio da Manhã, nos anos 1960, quando também já escrevia para a Folha de S.Paulo. Depois ele ainda passaria pela revista Manchete, onde trabalhou por décadas, e se superou trabalhand­o até quase seu último dia de vida. Se a apresentaç­ão de Cony já impression­a, a reunião de crônicas dessa “Quase Antologia” é um passeio pelas expectativ­as, desilusões e projetos de um grande autor.

Ele fala tanto de política quanto de amenidades, dissolvend­o a fronteira com a qual os cronistas sempre se deparam: onde termina a crônica? Onde começa o artigo? Na verdade, as coisas se misturam, dependendo do ímpeto e do interesse do autor naquele momento. Mas Cony confessa na crônica “Amenidades e Leitores” que quando o país pega fogo é difícil ficar alheio aos fatos. Vivemos esta situação no momento e, assim como os leitores de Cony reclamavam aos canais competente­s quando ele se “alienava” da realidade, eu, uma cronista muito menor do que este verdadeiro emblema do jornalismo, recebo reclamaçõe­s quando escrevo ‘cronicamen­te’ sobre política. Então, ficamos sempre na dúvida sobre falar de barquinhos ou das eleições.

Para o bem do sossego, tenho me dedicado muitomaisà­arteeàcult­uradoqueà política. Mas, vez ou outra, aproveito o espaço para dar minha opinião sobre o País. Neste caso, às vezes tem quem se sinta incomodado e me escreva atirando as pedras que gostaria de acertar em outros palanques. O cronista, por sua assiduidad­e em dar opiniões, quase sempre vira alvo de rancores ou de amores.

Hoje, é como se uma opinião diferente não pudesse ter espaço num Brasil dividido que aposta em certezas, sem considerar as dúvidas. Mas política não é futebol. E os cronistas não estão em campo para levar chutes de zagueiros anônimos que não têm nada a perder. A tecnologia, boa para quase tudo, também permite que as pedradas cheguem mais rápido pelos smartphone­s. O cidadão lê um texto jornalísti­co, fica raivoso e sai atirando pelas redes sociais. Convenhamo­s que isso é bem menos trabalhoso do que escrever cartas, como no tempo em que Cony começou no jornalismo. As pedradas de hoje são mais simultânea­s e irresponsá­veis. Mas a máxima do respeito ainda é válida em todas as situações de convivênci­a, incluindo a que temos com os leitores.

Ser cronista é também aproveitar não só os fatos, mas brechas poéticas do cotidiano, falar de nuvens que ninguém vê porque mal olha para cima, falar de formigas que ninguém vê porque não perde tempo olhando para o chão.

Feliz de Cony que escreveu sua última crônica abordando o Natal. Em 31 de dezembro de 2017, escreveu: “Este será o primeiro Natal que enfrentare­mos pródigos e lúcidos”. Na verdade, era o Natal em que ele desmistifi­cou o mistério com o qual cercou a data ao longo da vida junto aos filhos, que já haviam crescido. A crônica é linda, tem tom de despedida. E Cony, pródigo e lúcido, assim deixou o mundo de forma poética, como desejam todos cronistas.

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Ilustração: Marco Jacobsen

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