Lenda do santo mendigo
AOs ipês brancos decidiram florescer todos ao mesmo tempo; em geral isso acontece exatamente um mês antes de terminar o inverno, inverno que já foi muito mais rigoroso e devastador neste lugar do Sertão. E quem deve agradecer pelo frio menor são os habitantes da rua, que os mais velhos, feito o cronista, continuam chamando de mendigos.
Os ipês florescem e os mendigos mendigam. Na Praça Willie Davids, que dias atrás erroneamente chamei de Praça Arthur Thomas, confundindo os dois lendários cidadãos londrinenses, caminho lentamente em direção ao banco, onde pagarei impostos. De repente, alguém me chama:
- Paulo!
O homem está sentado no chão, às portas do prédio que antigamente era a loja das Casas Fuganti e, anos mais tarde, agência central do Bamerindus. Olha-me nos olhos, sorri.
- Paulo, você não pode me ajudar com algum trocado? Leio suas crônicas há muitos anos. Mas agora tô aqui...
Seu olhar é triste, é doloroso, mas também é inesperadamente doce. Por quantas penúrias e tormentos haverá passado? Não sei de onde o conheço; será de algum dos bares que frequentei na minha longa e noturna biografia boêmia? Terei algum dia - noite - saído trôpego de algum boteco após beber com ele?
Vasculho os bolsos, enquanto me vem à memória uma das cenas mais comovedoras da literatura brasileira: aquela em que Brás Cubas encontra na rua o seu velho e querido amigo de infância Quincas Borba, ora transformado em mendigo. *******
“- Aposto que não me conhece,
Sr. Dr. Cubas? - disse ele.
- Não me lembra...
- Sou o Borba, o Quincas Borba. Recuei espantado... Quem dera agora o verbo solene de um Bossuet ou de um Vieira, para contar tamanha desolação! Era o Quincas Borba, o gracioso menino de outro tempo, o meu companheiro de colégio, tão inteligente e agastado. Quincas Borba! Não; impossível; não pode ser. Não podia acabar de crer que essa figura esquálida, essa barba pintada de branco, esse maltrapilho avelhentado, que toda essa ruína fosse o Quincas Borba. Mas era. Os olhos tinham um resto de expressão de outro tempo, e o sorriso não perdera certo ar escarninho, que lhe era peculiar.” *******
Sem o amor de minha família, era provável que hoje em dia eu tivesse me tornado alguém muito parecido com o homem que encontrei na praça. Depois de dar uma nota a ele - o que tinha no momento, além do dinheiro contado dos impostos -, subi a Alameda Manoel Ribas pensando na lenda judaica dos 36 santos ocultos, que vivem como mendigos sem saber que constituem a razão pela qual Deus não destrói o mundo. Será o meu amigo um deles?
Os ipês florescem, os mendigos mendigam, e eu fico sem resposta.