Uma obra-prima fantasma
Filme considerado entre os melhores indicados ao Oscar de 2018, merece ser resgatado nas plataformas digitais
Surpreendentemente nominada ao Oscar deste ano, afinal vencido por “A Forma da Água”, a produção americana “Trama Fantasma” se apresentou como o melhor filme entre os nove indicados, uma obra contra a corrente pela temática, pela ambientação, ritmo, tom, profundidade, sutileza, elegância, matizes e sensibilidade. Por isso mesmo, por tantas qualidades, foi esnobado pela Academia, estigmatizado por distribuidores e exibidores, e condenado a um miserável exílio. Praticamente invisível, poucos viram o filme nas salas do país, para onde não voltará mais. Por isso ainda é tempo de resgatá-lo deste imerecido limbo, seja por qual plataforma for.
“Trama Fantasma” é a enraivecida, obsessiva, elegante (aqui e ali bem humorada) crônica de uma indústria - a da alta costura - e o encontro tumultuado de três seres humanos atormentados. Como em quase todos os títulos da filmografia do diretor Paul Thomas Anderson, é quase impossível resumir o história em uma sinopse sem vulgarizá-la ou traí-la. É um filme povoado por elipses, silêncios e olhares no qual o peso dramático recai naquilo que não se diz, no que fica fora do campo da câmera e no passado dos personagens, que volta constantemente na forma de lembranças fantasmagóricas que o espectador somente pode intuir enquanto o filme avança, à medida que entramos na suntuosa e dolorosa intimidade do personagem Woodcock, da irmã dele, Ciryl, e do objeto do desejo, Alma.
O filme conta uma história de amor com raro potencial subversivo e perverso, e também narra o processo criativo de um artista que está tão em dívida com a inspiração divina como com os aspectos mais prosaicos da moda. Paul Thomas Anderson, roteirista e diretor de “Boogie Nights/Prazer Sem Limites”, “Magnólia”, “Embriagado de Amor”, “Sangue Negro”, “O Mestre” e “Vicio Inerente” nos transporta até a Londres da década de 1950. Mais precisamente, até a casa vitoriana e ateliê de Reynolds Woodcok (Daniel Day-Lewis), obsessivo, rigoroso e muito autoritário estilista de moda que, além de criador, é severo supervisor das próprias confecções direcionadas para ricas e famosas, realeza incluída.
Além do batalhão de costureiras que trabalham para ele, Reynolds tem como braço direito a inseparável, metódica e cínica irmã Cyrill (Leslie Manville), personagem com fortes ressonâncias hitchcockianas e principal responsável pelos traços góticos da trama, alguém que também funciona como administradora de cada detalhe do empreendimento. Logo após terminar o relacionamento com uma jovem, o protagonista faz uma breve viagem ao interior do país durante a qual conhece uma garçonete bela e simples chamada Alma (Vicky Krieps). Que será sua amante e inspiradora. E sua doce danação.
As fobias e atitudes cruéis de Reynolds não demoram a aparecer. Um pouco à maneira fetichista de Buñuel, o estilista faz de Alma seu manequim preferido: ele observa, mede com os olhos, veste e desnuda a jovem. Este obscuro objeto do desejo, entretanto, é, por sua vez, alguém com ideias próprias sobre que espécie de amor ela vai literalmente inocular na vida de Reynolds, essa trama fantasma (trama aqui no sentido de urdidura, tecido, rede, teia) de perversões sutis com a qual é bordada, lenta e inexoravelmente, uma história de amor repleta de pespontos secretos, ocultos em suas dobras mais profundas.
E o tempo do espectador ficará, diante desse complexo encontro, buscando compreender a relação amorosa ambivalente entre o artista e sua musa: uma mescla de tensão estética e dominação patriarcal em que os papeis mudam constantemente e, como em outro dos melhores filmes da safra 2018, “Três Anúncios para um Crime”, as motivações dos personagens não nos ajudam a entendê-los, uma vez que provocam neles mudanças constantes que desafiam nossa expectativa ou preconceitos. Ninguém encarna melhor essas contradições do que o próprio Reynolds Woodcock, um animal de difícil compreensão e fascinante de observar, um felino semiadormecido cuja preguiçosa elegância implica, ao mesmo tempo, um perigo mortal.
Provocante, perturbador, exigente e fascinante como poucos filmes nas últimas décadas, “Trama Fantasma” é pleno de inteligência, com excelentes ideias e surpresas sobre o processo criador e a manipulação psicológica. Paul Thomas Anderson não estaciona no preciosismo ou na mera satisfação de um visual portentoso. Isto porque a intensidade das relações, a maleabilidade das interpretações, os elementos próprios do thriller hitchcockiano que surgem na segunda metade e a belíssima trilha sonora de Jonny “Radiohead” Greenwood (perfeito equilíbrio entre música, sons e silêncio) complementam um quadro de rara beleza e elegância. Para Day-Lewis, por outro lado, é uma despedida tão espetacular que a última certeza que nos revela é a verdadeira dimensão do imenso vazio que seu anunciado e definitivo afastamento das telas vai causar.