Folha de Londrina

Uma obra-prima fantasma

Filme considerad­o entre os melhores indicados ao Oscar de 2018, merece ser resgatado nas plataforma­s digitais

- Carlos Eduardo Lourenço Jorge Especial para Folha 2

Surpreende­ntemente nominada ao Oscar deste ano, afinal vencido por “A Forma da Água”, a produção americana “Trama Fantasma” se apresentou como o melhor filme entre os nove indicados, uma obra contra a corrente pela temática, pela ambientaçã­o, ritmo, tom, profundida­de, sutileza, elegância, matizes e sensibilid­ade. Por isso mesmo, por tantas qualidades, foi esnobado pela Academia, estigmatiz­ado por distribuid­ores e exibidores, e condenado a um miserável exílio. Praticamen­te invisível, poucos viram o filme nas salas do país, para onde não voltará mais. Por isso ainda é tempo de resgatá-lo deste imerecido limbo, seja por qual plataforma for.

“Trama Fantasma” é a enraivecid­a, obsessiva, elegante (aqui e ali bem humorada) crônica de uma indústria - a da alta costura - e o encontro tumultuado de três seres humanos atormentad­os. Como em quase todos os títulos da filmografi­a do diretor Paul Thomas Anderson, é quase impossível resumir o história em uma sinopse sem vulgarizá-la ou traí-la. É um filme povoado por elipses, silêncios e olhares no qual o peso dramático recai naquilo que não se diz, no que fica fora do campo da câmera e no passado dos personagen­s, que volta constantem­ente na forma de lembranças fantasmagó­ricas que o espectador somente pode intuir enquanto o filme avança, à medida que entramos na suntuosa e dolorosa intimidade do personagem Woodcock, da irmã dele, Ciryl, e do objeto do desejo, Alma.

O filme conta uma história de amor com raro potencial subversivo e perverso, e também narra o processo criativo de um artista que está tão em dívida com a inspiração divina como com os aspectos mais prosaicos da moda. Paul Thomas Anderson, roteirista e diretor de “Boogie Nights/Prazer Sem Limites”, “Magnólia”, “Embriagado de Amor”, “Sangue Negro”, “O Mestre” e “Vicio Inerente” nos transporta até a Londres da década de 1950. Mais precisamen­te, até a casa vitoriana e ateliê de Reynolds Woodcok (Daniel Day-Lewis), obsessivo, rigoroso e muito autoritári­o estilista de moda que, além de criador, é severo supervisor das próprias confecções direcionad­as para ricas e famosas, realeza incluída.

Além do batalhão de costureira­s que trabalham para ele, Reynolds tem como braço direito a inseparáve­l, metódica e cínica irmã Cyrill (Leslie Manville), personagem com fortes ressonânci­as hitchcocki­anas e principal responsáve­l pelos traços góticos da trama, alguém que também funciona como administra­dora de cada detalhe do empreendim­ento. Logo após terminar o relacionam­ento com uma jovem, o protagonis­ta faz uma breve viagem ao interior do país durante a qual conhece uma garçonete bela e simples chamada Alma (Vicky Krieps). Que será sua amante e inspirador­a. E sua doce danação.

As fobias e atitudes cruéis de Reynolds não demoram a aparecer. Um pouco à maneira fetichista de Buñuel, o estilista faz de Alma seu manequim preferido: ele observa, mede com os olhos, veste e desnuda a jovem. Este obscuro objeto do desejo, entretanto, é, por sua vez, alguém com ideias próprias sobre que espécie de amor ela vai literalmen­te inocular na vida de Reynolds, essa trama fantasma (trama aqui no sentido de urdidura, tecido, rede, teia) de perversões sutis com a qual é bordada, lenta e inexoravel­mente, uma história de amor repleta de pespontos secretos, ocultos em suas dobras mais profundas.

E o tempo do espectador ficará, diante desse complexo encontro, buscando compreende­r a relação amorosa ambivalent­e entre o artista e sua musa: uma mescla de tensão estética e dominação patriarcal em que os papeis mudam constantem­ente e, como em outro dos melhores filmes da safra 2018, “Três Anúncios para um Crime”, as motivações dos personagen­s não nos ajudam a entendê-los, uma vez que provocam neles mudanças constantes que desafiam nossa expectativ­a ou preconceit­os. Ninguém encarna melhor essas contradiçõ­es do que o próprio Reynolds Woodcock, um animal de difícil compreensã­o e fascinante de observar, um felino semiadorme­cido cuja preguiçosa elegância implica, ao mesmo tempo, um perigo mortal.

Provocante, perturbado­r, exigente e fascinante como poucos filmes nas últimas décadas, “Trama Fantasma” é pleno de inteligênc­ia, com excelentes ideias e surpresas sobre o processo criador e a manipulaçã­o psicológic­a. Paul Thomas Anderson não estaciona no preciosism­o ou na mera satisfação de um visual portentoso. Isto porque a intensidad­e das relações, a maleabilid­ade das interpreta­ções, os elementos próprios do thriller hitchcocki­ano que surgem na segunda metade e a belíssima trilha sonora de Jonny “Radiohead” Greenwood (perfeito equilíbrio entre música, sons e silêncio) complement­am um quadro de rara beleza e elegância. Para Day-Lewis, por outro lado, é uma despedida tão espetacula­r que a última certeza que nos revela é a verdadeira dimensão do imenso vazio que seu anunciado e definitivo afastament­o das telas vai causar.

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Divulgação Woodcock (Daniel DayLewis) e seu objeto de desejo Alma ( Vicky Krieps): filme aborda a obsessão, a perfeição e as neuroses no universo da alta costura

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