Lazer como direito social
Professora da UFPR ressalta importância de atividades como caminhada, brincar com os filhos ou contemplar a natureza
OBrasil sediou o Congresso Mundial de Lazer entre os dias 28 de agosto e 1.º de setembro, em São Paulo. O tema pode sugerir que se trata de algo banal — lazer é lazer, afinal de contas. O que estes pesquisadores foram discutir, no entanto, é um conceito muito mais amplo: trata-se de lazer como direito social, com desdobramentos sobre algumas das questões mais desafiadores dos nossos tempos — da mobilidade urbana à segurança pública.
Entre os participantes do congresso estava o pessoal do Geplec, o Grupo de Estudos e Pesquisa em Lazer, Espaço e Cidade da UFPR (Universidade Federal do Paraná). Liderado pela professora Simone Rechia, o grupo vem pesquisando há 18 anos as formas como as pessoas estão se apropriando da cidade e o papel do poder público nas políticas de incentivo a espaços de lazer.
Simone recebeu a reportagem da Folha de Londrina na sede do grupo, no campus Jardim Botânico da UFPR, para contar um pouco sobre as discussões que esta área de estudos vem promovendo. Ela conta que a sociedade brasileira ainda não entende o lazer como um direito social e uma dimensão prioritária na vida, e revela uma mudança de perspectiva nessa área poderia apontar caminhos para solucionar alguns dos problemas mais graves do país. Leia os principais trechos:
Por que o lazer é entendido como um direito?
A gente está numa sociedade em que a categoria principal é o trabalho. Parece que a gente vive para o trabalho e que o trabalho traz todas as respostas necessárias ao nosso desenvolvimento. Mas isso é um equívoco, porque ele é apenas uma das dimensões da vida. A outra é o tempo do não trabalho, e é nele que há uma potência de desenvolvimento humano maior. Porque neste tempo do não trabalho você faz coisas que você gosta, que lhe realizam, que têm significado para você — às vezes só para você e para mais ninguém. É um tempo e um espaço de muito significado para o ser humano.
De que tipo de lazer estamos falando?
Esse lazer pelo qual tentamos lutar está relacionado com um tempo não funcional. São práticas cotidianas mais simples, como uma caminhada, brincar com os filhos, contemplar a natureza, ler um livro, ouvir uma orquestra na praça. São atividades que não envolvem tanto o valor econômico. Parece que a sociedade moderna compreende lazer como trabalhar o ano todo para ter uma semana de férias e comprar um pacote de turismo caríssimo. Esse é apenas um tipo de lazer, que chamamos de “mercolazer”. Esse lazer como direito social não é mercadológico. É uma possibilidade de equilibrar no cotidiano o tempo do trabalho com o do não trabalho com práticas simples, que gerem uma qualidade de vida melhor.
Você não citou nenhuma prática de lazer que envolva telas. A tecnologia se tornou uma questão problemática para o lazer?
Sim. As novas tecnologias trazem consigo avanços muito relevantes, mas também individualizam o sujeito. Elas retiram o sujeito do mundo social e o conectam com o mundo virtual. Isso é problemático. Esse distanciamento do sujeito da vida pública gera uma falta de tolerância para a convivência coletiva, uma falta de compreensão das diferenças e um distanciamento da política e dos problemas da cidade. Ele também se torna um sujeito menos ativo em termos de práticas corporais. Isso está trazendo problemas. Há crianças pequenas que estão perdendo habilidades motoras básicas como correr, saltar, jogar. Brincar na rua, conhecer amigos e inventar brincadeiras são questões que constituem o ser humano e o preparam para a vida adulta. As novas tecnologias estão imobilizando isso. Claro, elas desenvolvem outras coisas, mas existe toda uma outra perspectiva do corpo em movimento que esta nova geração está perdendo. E tudo isso é vivido no tempo de lazer.
Você acha que este conceito de lazer é compreendido no Brasil?
Em uma sociedade em desenvolvimento, como é o caso do Brasil, com uma precarização em todas as dimensões da vida — no mundo do trabalho, na dimensão política, na dimensão da vida privada e das relações humanas —, há uma dificuldade em se pensar que o lazer como algo prioritário. Mas isso é um equívoco. Porque, a partir do momento em que você tem um equilíbrio entre o mundo do trabalho e o do não trabalho, você também evita doenças contemporâneas. O investimento em cultura, lazer e esporte, para os governos, significa uma economia na saúde e na segurança pública.
Como lazer e segurança se relacionam?
Se você tem um sujeito que vive o espaço público, que está na cidade e que a ocupa, essa cidade se torna menos violenta. Há dados e pesquisas sobre isso. A dimensão do lazer vivido cotidianamente humaniza as cidades. Os países em desenvolvimento estão pensando nessas relações cotidianas do sujeito com a cidade, o ambiente em que vive, as pessoas. Até como uma forma de economizar em outras esferas.
Como a ocupação dos espaços diminui a violência?
As pessoas se sentem mais inseguras em espaços esvaziados. Em compensação, um espaço cheio de crianças, jovens, adultos e idosos — todos juntos, com brincadeiras e interesses culturais —, se tornam mais seguros. Quando pensamos em segurança, não estamos falando em colocar um módulo policial dentro dos espaços. Estamos falando em colocar pessoas, ter uma programação, uma política de ocupação. No livro “Morte e vida de grandes cidades”, Jane Jacobs já falava que as políticas públicas, sempre que pensam em segurança, pensam em policiamento, e deixam os espaços com tanta polícia que as pessoas saem. Se o espaço tiver mais liberdade, as pessoas cuidam umas das outras — é o que ela chama de “olhos vigilantes”. Por outro lado, espaços esvaziados dão a possibilidade de outros grupos se apropriarem deles. Se você tiver um bosque, praça ou parque vazio e houver um grupo de drogaditos, eles vão ocupar esse espaço para o uso de drogas. Alguém vai usar esses espaços. Se você levar movimento a esses locais, esses grupos de “lazer desviante”, como chamamos, se retiram.
Por que é necessário uma política de ocupação? Ela não deveria ocorrer espontaneamente?
Falta educação. Se estivéssemos partindo do princípio de que o país é potente no campo educacional e possibilita um desenvolvimento global do sujeito na escola — por meio do acesso à cultura, ao lazer e ao esporte —, as pessoas teriam autonomia para sair do ambiente escolar, olhar para a sociedade e seu entorno e se apropriar dos espaços que têm. Mas temos um ensino precarizado, que não olha para a cultura, o esporte e o lazer como direitos. É nesse sentido que é preciso ter uma política pública de incentivo a essas práticas culturais diversificadas.
Como o Estado tem atuado nesse sentido?
O poder público tem uma política paternalista, de achar que sabe o que é melhor para as pessoas, fazer programações de aniversário da cidade, de Dia das Crianças. Mas chama muito pouco a comunidade para participar da elaboração dessas programações. Um programa não deve ser igual na cidade toda, porque cada bairro tem uma cultura. Um boa política pública teria de ouvir a comunidade, ouvir as diferenças e coletar sugestões para gerar situações de divertimentos que atendam a diferentes necessidades. Parece que ainda não temos essa cultura política em nosso país.
Se o sujeito vive o espaço público, a cidade se torna menos violenta”
Um dos conceitos centrais para o grupo de estudos de vocês é a cidade. Como essas questões se relacionam?
Estamos com um problema seriíssimo de mobilidade urbana, de violência, de acessibilidade, de desenho arquitetônico nas cidades. Uma das soluções é a mobilidade. Porque sem a mobilidade você não tem acesso qualificado para nada: mundo do trabalho, cultura, saúde. O principal ponto de uma política publica de planejamento urbano e a mobilidade. É a partir dela que você democratiza o acesso. Em cidades mais desenvolvidas, há uma retirada total do carro das grandes cidades e o estímulo a caminhar a pé, de bicicleta, ocupação do espaço público, parques, praças. Você reduz o espaço do automóvel e potencializa o espaço das pessoas.