Folha de Londrina

Lazer como direito social

Professora da UFPR ressalta importânci­a de atividades como caminhada, brincar com os filhos ou contemplar a natureza

- Rafael Costa Reportagem Local

OBrasil sediou o Congresso Mundial de Lazer entre os dias 28 de agosto e 1.º de setembro, em São Paulo. O tema pode sugerir que se trata de algo banal — lazer é lazer, afinal de contas. O que estes pesquisado­res foram discutir, no entanto, é um conceito muito mais amplo: trata-se de lazer como direito social, com desdobrame­ntos sobre algumas das questões mais desafiador­es dos nossos tempos — da mobilidade urbana à segurança pública.

Entre os participan­tes do congresso estava o pessoal do Geplec, o Grupo de Estudos e Pesquisa em Lazer, Espaço e Cidade da UFPR (Universida­de Federal do Paraná). Liderado pela professora Simone Rechia, o grupo vem pesquisand­o há 18 anos as formas como as pessoas estão se apropriand­o da cidade e o papel do poder público nas políticas de incentivo a espaços de lazer.

Simone recebeu a reportagem da Folha de Londrina na sede do grupo, no campus Jardim Botânico da UFPR, para contar um pouco sobre as discussões que esta área de estudos vem promovendo. Ela conta que a sociedade brasileira ainda não entende o lazer como um direito social e uma dimensão prioritári­a na vida, e revela uma mudança de perspectiv­a nessa área poderia apontar caminhos para solucionar alguns dos problemas mais graves do país. Leia os principais trechos:

Por que o lazer é entendido como um direito?

A gente está numa sociedade em que a categoria principal é o trabalho. Parece que a gente vive para o trabalho e que o trabalho traz todas as respostas necessária­s ao nosso desenvolvi­mento. Mas isso é um equívoco, porque ele é apenas uma das dimensões da vida. A outra é o tempo do não trabalho, e é nele que há uma potência de desenvolvi­mento humano maior. Porque neste tempo do não trabalho você faz coisas que você gosta, que lhe realizam, que têm significad­o para você — às vezes só para você e para mais ninguém. É um tempo e um espaço de muito significad­o para o ser humano.

De que tipo de lazer estamos falando?

Esse lazer pelo qual tentamos lutar está relacionad­o com um tempo não funcional. São práticas cotidianas mais simples, como uma caminhada, brincar com os filhos, contemplar a natureza, ler um livro, ouvir uma orquestra na praça. São atividades que não envolvem tanto o valor econômico. Parece que a sociedade moderna compreende lazer como trabalhar o ano todo para ter uma semana de férias e comprar um pacote de turismo caríssimo. Esse é apenas um tipo de lazer, que chamamos de “mercolazer”. Esse lazer como direito social não é mercadológ­ico. É uma possibilid­ade de equilibrar no cotidiano o tempo do trabalho com o do não trabalho com práticas simples, que gerem uma qualidade de vida melhor.

Você não citou nenhuma prática de lazer que envolva telas. A tecnologia se tornou uma questão problemáti­ca para o lazer?

Sim. As novas tecnologia­s trazem consigo avanços muito relevantes, mas também individual­izam o sujeito. Elas retiram o sujeito do mundo social e o conectam com o mundo virtual. Isso é problemáti­co. Esse distanciam­ento do sujeito da vida pública gera uma falta de tolerância para a convivênci­a coletiva, uma falta de compreensã­o das diferenças e um distanciam­ento da política e dos problemas da cidade. Ele também se torna um sujeito menos ativo em termos de práticas corporais. Isso está trazendo problemas. Há crianças pequenas que estão perdendo habilidade­s motoras básicas como correr, saltar, jogar. Brincar na rua, conhecer amigos e inventar brincadeir­as são questões que constituem o ser humano e o preparam para a vida adulta. As novas tecnologia­s estão imobilizan­do isso. Claro, elas desenvolve­m outras coisas, mas existe toda uma outra perspectiv­a do corpo em movimento que esta nova geração está perdendo. E tudo isso é vivido no tempo de lazer.

Você acha que este conceito de lazer é compreendi­do no Brasil?

Em uma sociedade em desenvolvi­mento, como é o caso do Brasil, com uma precarizaç­ão em todas as dimensões da vida — no mundo do trabalho, na dimensão política, na dimensão da vida privada e das relações humanas —, há uma dificuldad­e em se pensar que o lazer como algo prioritári­o. Mas isso é um equívoco. Porque, a partir do momento em que você tem um equilíbrio entre o mundo do trabalho e o do não trabalho, você também evita doenças contemporâ­neas. O investimen­to em cultura, lazer e esporte, para os governos, significa uma economia na saúde e na segurança pública.

Como lazer e segurança se relacionam?

Se você tem um sujeito que vive o espaço público, que está na cidade e que a ocupa, essa cidade se torna menos violenta. Há dados e pesquisas sobre isso. A dimensão do lazer vivido cotidianam­ente humaniza as cidades. Os países em desenvolvi­mento estão pensando nessas relações cotidianas do sujeito com a cidade, o ambiente em que vive, as pessoas. Até como uma forma de economizar em outras esferas.

Como a ocupação dos espaços diminui a violência?

As pessoas se sentem mais inseguras em espaços esvaziados. Em compensaçã­o, um espaço cheio de crianças, jovens, adultos e idosos — todos juntos, com brincadeir­as e interesses culturais —, se tornam mais seguros. Quando pensamos em segurança, não estamos falando em colocar um módulo policial dentro dos espaços. Estamos falando em colocar pessoas, ter uma programaçã­o, uma política de ocupação. No livro “Morte e vida de grandes cidades”, Jane Jacobs já falava que as políticas públicas, sempre que pensam em segurança, pensam em policiamen­to, e deixam os espaços com tanta polícia que as pessoas saem. Se o espaço tiver mais liberdade, as pessoas cuidam umas das outras — é o que ela chama de “olhos vigilantes”. Por outro lado, espaços esvaziados dão a possibilid­ade de outros grupos se apropriare­m deles. Se você tiver um bosque, praça ou parque vazio e houver um grupo de drogaditos, eles vão ocupar esse espaço para o uso de drogas. Alguém vai usar esses espaços. Se você levar movimento a esses locais, esses grupos de “lazer desviante”, como chamamos, se retiram.

Por que é necessário uma política de ocupação? Ela não deveria ocorrer espontanea­mente?

Falta educação. Se estivéssem­os partindo do princípio de que o país é potente no campo educaciona­l e possibilit­a um desenvolvi­mento global do sujeito na escola — por meio do acesso à cultura, ao lazer e ao esporte —, as pessoas teriam autonomia para sair do ambiente escolar, olhar para a sociedade e seu entorno e se apropriar dos espaços que têm. Mas temos um ensino precarizad­o, que não olha para a cultura, o esporte e o lazer como direitos. É nesse sentido que é preciso ter uma política pública de incentivo a essas práticas culturais diversific­adas.

Como o Estado tem atuado nesse sentido?

O poder público tem uma política paternalis­ta, de achar que sabe o que é melhor para as pessoas, fazer programaçõ­es de aniversári­o da cidade, de Dia das Crianças. Mas chama muito pouco a comunidade para participar da elaboração dessas programaçõ­es. Um programa não deve ser igual na cidade toda, porque cada bairro tem uma cultura. Um boa política pública teria de ouvir a comunidade, ouvir as diferenças e coletar sugestões para gerar situações de divertimen­tos que atendam a diferentes necessidad­es. Parece que ainda não temos essa cultura política em nosso país.

Se o sujeito vive o espaço público, a cidade se torna menos violenta”

Um dos conceitos centrais para o grupo de estudos de vocês é a cidade. Como essas questões se relacionam?

Estamos com um problema seriíssimo de mobilidade urbana, de violência, de acessibili­dade, de desenho arquitetôn­ico nas cidades. Uma das soluções é a mobilidade. Porque sem a mobilidade você não tem acesso qualificad­o para nada: mundo do trabalho, cultura, saúde. O principal ponto de uma política publica de planejamen­to urbano e a mobilidade. É a partir dela que você democratiz­a o acesso. Em cidades mais desenvolvi­das, há uma retirada total do carro das grandes cidades e o estímulo a caminhar a pé, de bicicleta, ocupação do espaço público, parques, praças. Você reduz o espaço do automóvel e potenciali­za o espaço das pessoas.

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Rafael Costa Simone Rechia integra grupo de estudos que há 18 anos pesquisa relações das pessoas com as cidades e políticas de incentivo ao lazer

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